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A educação a distância (EaD) é a modalidade favorita dos brasileiros que desejam cursar uma graduação. Segundo a edição 2021 do Mapa do Ensino Superior, o número de matrículas nesse formato cresceu 19,7% em 2021, ante uma queda de 5,5% do ensino presencial.

Nos últimos dez anos, o número de graduações a educação a distância (EaD) aumentou 700%, saltando de 1.148, em 2012, para 9.186, no ano passado.

O sucesso da EaD é resultado de uma série de fatores – entre os quais se destacam a facilidade de acesso e o custo reduzido das mensalidades. Quando se fala em qualidade de ensino, porém, o formato não é exatamente uma unanimidade.

Prova disso é o impacto da decisão do Ministério da Educação (MEC) de autorizar a abertura do primeiro curso de graduação em Psicologia EaD, que acabou revogada tão logo foi anunciada. O caso levantou um debate fervoroso sobre as competências profissionais que podem (ou não) ser desenvolvidas na educação a distância, sem comprometer a qualidade da formação dos estudantes de Psicologia.

Novo perfil do curso de Psicologia

O aumento da preocupação com questões de saúde mental fez com que o curso de Psicologia tivesse um boom na última década.

Conforme o Censo da Educação Superior, foi a sexta graduação mais procurada no Brasil em 2021, com quase 290 mil matrículas – o dobro de 2011. A rede privada é responsável pelo ingresso de 90% desses estudantes (261,8 mil). Trata-se do segundo curso mais procurado na graduação presencial particular, atrás apenas do Direito.

A alta demanda chamou atenção das instituições de ensino superior (IES) privadas, responsáveis por praticamente toda a oferta na modalidade EaD no País – 94,9%, segundo o Mapa do Ensino Superior. A pioneira a pedir o credenciamento de um curso de Psicologia EaD junto ao MEC foi o Centro Universitário Maurício de Nassau (Uninassau), de forte atuação nas regiões Nordeste e Norte.

O aval foi concedido por meio de uma portaria publicada em 14 de julho de 2022. Mas, no dia seguinte, por pressão do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e outras 20 entidades de classe, o MEC voltou atrás e barrou a criação do curso.


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A polêmica teve um novo capítulo em março, com a renovação da  portaria n° 398/2023, que prorrogou por 12 meses a suspensão dos processos de autorização, renovação e reconhecimento de novos cursos a distância de Psicologia e de mais três graduações: Direito, Enfermagem e Odontologia. A medida também instituiu um Grupo de Trabalho no MEC para discutir o assunto.

Em junho, conselhos profissionais e outros órgãos ligados a essas áreas emitiram uma nota recomendando que o MEC altere o texto da portaria nº 2.117. Publicado em dezembro de 2019, o documento havia dobrado o limite da carga horária EaD (de 20% para 40%) em graduações presenciais, com exceção da Medicina.

No caso da Psicologia, a alegação principal é de que a atividade exige vivência acadêmica dentro e fora da sala de aula.

Agora, a expectativa recai sobre os desdobramentos de uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) que constatou a ausência de política pública estruturada para a educação como um todo, seja na modalidade presencial ou a distância.

A investigação apontou inconsistência dos processos de regulação e supervisão dos cursos, dando 180 dias para o MEC apresentar um plano de ação para a política nacional de educação superior, prazo que expira no dia 5 de outubro de 2023.

Psicologia EaD: dois pontos de vista

Para ampliar o debate – que parece longe do fim –, o portal Desafios da Educação ouviu duas autoridades da área educacional com visões distintas sobre o tema:

Jucimara Roesler, reitora no centro universitário Unihorizontes e membro do Comitê Científico da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed);

Iraní Tomiatto de Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (Abep).

Você é a favor ou contra o curso de Psicologia EaD?

– Jucimara Roesler, da ABED

Jucimara Roesler. Crédito: divulgação

Sou a favor. Não se trata mais de escolher ou não a implantação de práticas digitais nas IES, o aluno já tem a sua preferência: estudar e aprender de forma híbrida ou online. As razões estão associadas aos valores mais baixos das mensalidades, à oferta de cursos em todas as áreas de conhecimento e à flexibilidade metodológica da educação a distância.

Outro fator extremamente relevante é a interiorização do ensino. Um estudo recente, feito a partir dos dados do Censo da Educação Superior, destaca que mais de 17 mil polos foram instalados nos municípios brasileiros em 2021. Isso significa que 100% das cidades com mais de 300 mil habitantes têm ensino superior por meio de EaD, e que ela cobre as cidades com até 50 mil habitantes, que são 90% dos municípios brasileiros.

Os cursos da área da Saúde estão sendo implementados com excelentes resultados, metodologias inovadoras e aulas práticas em ambientes presenciais que garantem a aprendizagem das competências específicas e profissionais. Não faz sentido impedir a autorização de cursos como Psicologia e Direito, privando os alunos dos pequenos municípios de obter esta formação e atuar em prol de sua comunidade.

– Iraní Tomiatto de Oliveira, da Abep

Iraní Tomiatto de Oliveira. Crédito: divulgação.

Sou contra. E gostaria de esclarecer que essa não é apenas uma opinião pessoal. A constatação sobre a impossibilidade de uma formação em Psicologia com qualidade acadêmica, técnica e ética na EaD é expressa pela Abep, pelo Conselho Federal de Psicologia e por todos os Conselhos Regionais de Psicologia do País, além do Fórum das Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira, do Conselho Nacional de Saúde e do Fórum dos Conselhos Federais da Área da Saúde. Essa posição se refere não só à Psicologia, mas às profissões da área da Saúde.

A Psicologia é uma profissão relacional. O desenvolvimento das competências essenciais para o trabalho do psicólogo envolve sempre relacionamentos interpessoais, em um nível de percepção e atuação que só a presença real permite. O desenvolvimento da capacidade de acolhimento, empatia, a escuta ativa, a compreensão dos aspectos emocionais envolvidos em cada situação e a análise de contexto só são possíveis na relação presencial com o outro.

Acredita que todas as graduações podem ser oferecidas a distância?

– Jucimara Roesler

É preciso aceitar que os modelos tradicionais de ensino estão superados. A cultura digital carrega consigo o desejo da agilidade, da instantaneidade, do mobile, de ter acesso a qualquer hora e de qualquer lugar. A EaD é reconhecida mundialmente. Não há divisão de modalidades em outros países – como, por exemplo, nos Estados Unidos, em que a oferta de todos os cursos, independentemente da área de conhecimento, se dá de forma natural.

No Brasil, desde 2021, os cursos a distância ultrapassaram a proporção de 50% em relação ao total de matrículas na graduação. Essa preferência é um indicador de que a formação tem sido qualificada pelos indicadores do MEC e pela sociedade, que vem fazendo suas escolhas. A transformação digital está inovando as práticas de trabalho. E a aprendizagem precisa acompanhar este cenário em todas as áreas do conhecimento.

Algum dia será possível cursar Psicologia a distância, com o mesmo nível de qualidade do presencial?

– Iraní Tomiatto de Oliveira

Considero que não, porque não se trata do desenvolvimento de tecnologias nem de novas formas de ensino-aprendizagem. Trata-se da essência da Psicologia e do perfil profissional do psicólogo, que envolve vivências e práticas diversificadas, durante todo o processo de formação, experiências em uma variedade de processos e de contextos de trabalho, comunicação em diferentes linguagens. Não é uma formação que se limita ao domínio cognitivo, em que orientações a distância sejam suficientes para permitir o desenvolvimento das competências essenciais.

“O desafio atual é inovar a aprendizagem e os serviços com práticas digitais, o que requer um mindset digital”, afirma Jucimara Roesler. Crédito: Freepik

É impossível um curso de Psicologia EaD, então?

– Iraní Tomiatto de Oliveira

Não há cuidados que sejam suficientes para prover as condições necessárias à formação de um psicólogo se excluirmos a presença real, a experiência nas comunidades, a convivência, o contato com as muitas diferenças humanas e com os espaços de atuação profissional. Não se trata de sermos contrários ao uso das tecnologias, mas de reconhecermos que elas são metodologias complementares que, de forma alguma, no caso da Psicologia, substituem a presença.

Mesmo a autorização de até 40% da carga horária total dos cursos a distância é excessiva e traz prejuízos para a formação. O argumento de que a EaD representa a democratização, com a expansão da formação aos rincões mais distantes, não se comprova na prática. Sabemos bem que a imensa maioria dos polos se localiza nos grandes centros, e que nossa população tem seríssimas dificuldades de inclusão digital.

Há ainda um agravante importante, que é a ausência de fiscalização. O número de polos é extremamente elevado – 28.548, contra 9.296 cursos presenciais na área da Saúde (dados mais recentes do Fórum dos Conselhos Federais da Área da Saúde). Muitos deles não apresentam condições mínimas de atendimento, alguns estão localizados no exterior. A ausência de argumentos consistentes para essa implantação deixa claro que ela atende apenas aos interesses comerciais dos grandes grupos, que visam prioritariamente o lucro e que veem a educação superior como um negócio, não como um direito constitucional.

Quais cuidados precisam ser adotados na criação de cursos EaD?

– Jucimara Roesler

Os cuidados se referem à modelagem pedagógica e à oferta dos serviços educacionais para atender às necessidades dos estudantes. A educação a distância requer investimento em conteúdos, tecnologias e na equipe de professores, que desenvolvem competências de formação geral, formação específica e profissionalizante da área do curso. O desafio atual é inovar a aprendizagem e os serviços com práticas digitais, o que requer um mindset digital. Obviamente, competências que requerem manejo e aplicação de práticas profissionais são feitas em ambientes presenciais ou virtuais que viabilizem a aprendizagem e as exigências estabelecidas nas diretrizes curriculares dos cursos.

Em relação à Psicologia, os conselhos têm como pano de fundo o questionamento da qualidade da formação profissional. Preocupação relevante, desde que também estendida a cursos presenciais que apresentam baixa qualidade de ensino, o que pode ser constatado com os resultados da avaliação do Sinaes (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior).


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