“Aprendi a fazer assim, o desenho pronto para eles colorirem”, “dizem que é bom o exercício de cópia para a letra ficar bonita” e “colocar a criança sentada, fazendo dever, ajuda no sucesso do ensino fundamental”. Frases como essas foram ouvidas pela professora Maria Fernanda Rezende Nunes, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), ao entrevistar professores.
Maria Fernanda fez parte da equipe do projeto Leitura e escrita na educação infantil, coordenado por Mônica Correia Baptista, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O projeto é fruto de um trabalho que começou em 2008, envolveu debates entre especialistas, pesquisadores, professores e gestores, seminários internacionais e congressos, e deixou evidente que a complexidade do tema exigia um curso de formação para professores da educação infantil.
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“Não podemos dizer que uma criança de 4 anos é apenas menorzinha do que a de 6 ou 7 anos”, explica Mônica. “Ela se relaciona de forma distinta com os objetos de conhecimento, e com a linguagem escrita não seria diferente”.
O resultado foi a elaboração de uma proposta de formação continuada destinada a professores da educação infantil, acompanhada de um material didático-pedagógico produzido por 38 autores e dividido em 10 cadernos.
Finalizada em agosto de 2016, a coleção Leitura e escrita na educação infantil aguarda* a posição do MEC para ser colocada em prática e garantir a formação de docentes da primeira etapa da educação básica. “Estamos ansiosos para testar esse material. É um curso de linguagem acessível, mas o material não simplifica o conhecimento, que é tão complexo”, afirma Mônica.
Na opinião de Patrícia Corsino, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também integrante do projeto, a soma de fatores como a ampliação da obrigatoriedade escolar gradativa, o ingresso das crianças de 6 anos no ensino fundamental e a pré-escola obrigatória a partir dos 4 anos levou a reflexões, pesquisas e algumas conclusões relacionadas à alfabetização.
Entre elas estão a importância da educação infantil no desenvolvimento da linguagem verbal e na ampliação do universo de referência infantil, o que inclui a linguagem escrita. “A criança pode se alfabetizar com 4, 5 anos? Sim, mas esse interesse é individual e não pode, jamais, ser o objetivo para o coletivo da escola”, afirma.
Patrícia entende que a educação infantil deve despertar o desejo das crianças de aprender a ler e a escrever, mas o aprendizado formal deve ocorrer no ensino fundamental. Ela reconhece, no entanto, que há famílias e professores presos a paradigmas ultrapassados.
“Existe uma visão de adestramento, uma ideia de que a criança vai aprender copiando e colorindo es-paços vazios de desenhos feitos por outros, por exemplo”, observa. Ela percebe que, para alguns pais e professores, esse tipo de exercício tem o seu valor e prepara meninos e meninas para etapas futuras.
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Escolarização precoce
Sálua Domingos Guimarães, orientadora pedagógica da rede municipal de Campinas (SP), lida com famílias que sonham em ver seus filhos alfabetizados já na pré-escola. “Alguns acreditam que, quanto mais cedo a criança aprender a ler e a escrever, melhor para ela. Não necessariamente.” A educadora já enfrentou situações delicadas, da perspectiva não só dos pais, como também dos alunos.
Um caso que chamou muito a sua atenção foi o de uma criança que não sabia brincar e sempre perguntava sobre a tarefa. Ao analisar esse comportamento, atípico para uma criança na pré-escola, a educadora concluiu que a menina estava acostumada com outra prática. Ela não conseguiu se adaptar e seus pais acabaram por trocá-la de escola.
Sálua destaca que a escola é o primeiro lugar que a criança passa a frequentar fora do âmbito da família e, por essa razão, o trabalho pedagógico deve ser conduzido por profissionais capacitados, sensíveis aos sinais emitidos pelas crianças e atentos ao universo familiar. Tudo isso sem perder o foco no objetivo dessa etapa, que, na opinião da educadora, é a ampliação do repertório cultural apoiada na intencionalidade.
Nesse aspecto, entram em jogo conceitos como alfabetização e letramento. Vale ressaltar que, de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEIs), “as práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira”.
A alfabetização e o letramento surgem como atribuições do ensino fundamental. De acordo com Patrícia Corsino, alfabetização é o processo stricto sensu de apropriação da linguagem escrita. “Letramento seria uma coisa mais social”, explica.
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Para Sálua Guimarães, letramento é promover a relação da criança com a cultura escrita, e isso se dá desde as fases mais tenras da vida, ao passo que a alfabetização é o processo de sistematização do ensino da escrita e ocorre mais adiante. “São coisas diferentes, porém articuladas”, explica.
A contação de histórias, o acesso ao livro, a organização do dia e a comunicação com os pais por meio de bilhetes são exemplos de práticas de letramento presentes no cotidiano. “Dessa forma, aos poucos, a criança vai percebendo que o seu mundo se organiza numa lógica escrita, mas eu não estou preocupada em ensinar a sistematização do código escrito das letras, das sílabas”, esclarece.
Apostilas aos 3 anos
Outro ponto que acende o sinal de alerta, sob a ótica da pedagoga, é verificar que muitos professores reproduzem o treino a que foram submetidos e que algumas escolas, ainda que escondidas, tentam fazer um trabalho de sistematização de leitura e escrita na educação infantil, muitas vezes recorrendo ao uso de apostilas.
De fato, em pesquisa realizada entre 2008 e 2009, a professora Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento, da Faculdade de Educação da Universidade de São Pau-lo (USP), constatou que as apostilas são adotadas em boa parte das pré-escolas da rede pública de dezenas de municípios paulistas. De acordo com as informações levantadas, esse material chega a ser utilizado com crianças de 3 anos.
Embora a pesquisa esteja próxima de completar dez anos, a professora Anete Abramovicz, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), observa que esse debate está aceso justamente por causa da adesão à metodologia apostilada de ensino na educação infantil, sobretudo por muitas prefeituras de São Paulo. “Mandar as crianças sentarem e preencherem apostilas é de uma tristeza sem fim”, lamenta.
Na opinião da especialista, em geral o Brasil adota soluções provisórias, e há uma ideia de que antecipar etapas pode resolver os problemas que cercam a educação no nosso país. “O que a gente esquece é que se pode antecipar os fracassos”, afirma.
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Para Anete Abramowicz, uma boa escola de edu-cação infantil não tem nada a ver com escolarização precoce. A aprendizagem da leitura e da escrita pela criança pequena passa por uma compreensão dos professores de quais são as questões que os alunos estão vivendo e de como é possível ajudar as crianças a elaborar, ampliar e entender o seu mundo.
“Aprender a ler e escrever é um processo social, não há idade certa para se alfabetizar, desde que se respeite o tempo da criança”, afirma Anete.
No entanto, ela considera importante combater a crença de que nessa fase se aprende a ler e a escrever brincando. “Não é brincadeira, há um certo formalismo que se aprende, por isso eu acho que educação infantil e alfabetização é um mau encontro”, afirma.
Só brincar?
Nesse campo aberto para debates, Alessandra Arce, professora do Departamento de Educação da UFSCar, defende a importância de discutir o papel do ensino da educação infantil. “Existem posicionamentos que acham que, ao ensinar na educação infantil, você estaria roubando a infância, por isso, essa fase deveria ser concentrada no brincar”, afirma.
Ela considera tais posições equivocadas, pois partem do princípio de que o desenvolvi-mento da criança é um processo natural. “Não é assim, o desenvolvimento da criança depende íntima e direta-mente do que nós ensinamos, do que nós proporciona-mos para ela de experiência.”
Por isso a educadora defende que, desde pequenininha, a criança faça parte do ambiente letrado no qual ela vive. Afinal, considerando o atual contexto da sociedade, em que as crianças vão para a escola ainda bebês, é natural que elas aprendam a falar dentro da escola, em decorrência do trabalho que o professor faz em sala de aula. “A aprendizagem da criança se dá pela exploração do concreto. O professor precisa ter a clareza de que esse é um processo longo, que vai exigir repetição, reprodução e intencionalidade”, explica.
Ela entende ser imprescindível a presença de um profissional gabaritado, completo, que tenha em mente alguma metodologia de alfabetização, que domine as áreas linguística e fonética. Na contramão desse raciocínio, ela observa que muitas prefeituras estão deixando de contratar professores para admitir recreacionistas, com a exigência de que estejam cursando o ensino médio. “Acredita-se que para trocar fralda e dar uma mamadeira não precisa de grande formação”, diz.
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*Reportagem de Silvana Azevedo publicada na edição n° 51 da Revista Pátio Educação Infantil, sob o título “Aprendizagem cerceada de mitos”.
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