Ensino Básico

Os sentidos da leitura e da escrita, praticados em sala de aula

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alfabetização

A participação das crianças no processo de alfabetização acaba sendo, muitas vezes, invisibilizada pelos professores em sala de aula. Crédito: Pexels.

*Por Andrea Serpa e Cristiana Callai

Este artigo, fruto do encontro de pesquisas e pesquisadoras das infâncias e dos cotidianos escolares, é um convite a refletirmos sobre alguns conceitos que, mesmo não sendo novos, apresentam certa urgência em serem revisitados: os conceitos relacionados à aprendizagem e ao desenvolvimento infantil, à formação docente e ao ensino dos anos iniciais de escolaridade e de alfabetização que se confrontam em nossas escolas na contemporaneidade.

Como pesquisamos com os cotidianos, partiremos de um pequeno fragmento de vida que nos serviu de inspiração. Em nossas pesquisas no cotidiano escolar da educação infantil, presenciamos uma situação que nos chamou atenção: Thaís, de 5 anos, havia quase uma hora que copiava letras e palavras para o seu caderno. Ao perceber nossa presença, ela disse, sem tirar os olhos da atividade: “A professora cismou que se copiar a gente aprende”. Ao terminar a sua fala, Thaís moveu o pescoço em sinal de reprovação.

Thaís, uma criança de 5 anos, denuncia com suas gestualidades algo que já percebeu: a cópia de letras e palavras não ensina a ler e escrever.

Compartilhando esse cotidiano, observamos que a preocupação com o processo de alfabetização como preparação para a aquisição da leitura e da escrita antecipa o modelo do ensino fundamental. Apesar das especificidades das crianças, da relação entre brincadeira e aprendizagem, das vivências com as diferentes linguagens presentes em nossa sociedade, a participação das crianças no processo de alfabetização acaba sendo invisibilizada.

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A utilização de apostilas também se faz presente nas práticas pedagógicas na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, produzindo fábricas de reproduções, como quando as crianças são encaminhadas de mesa em mesa, num fazer em série, massificadas por atividades prontas, fotocopiadas, em que elas executam uma ordem escrita que é (re)produzida pela voz do adulto: escrever, pintar, recortar, cobrir, ligar…

A antecipação de práticas mecânicas nos leva aos “exercícios de prontidão”. Por que ainda há a predominância de práticas de (re)produção, típicas de uma escola que tem por objetivo silenciar as vozes, adestrar o corpo, subjugar o pensamento, subalternizar a subjetividade? Uma escola do século XIX no século XXI?

Por que tantas escolas e professores ainda “cismam” que o treino mecânico de letrinhas desprovidas de sentido, a memorização de numerais vazios de conceitos numéricos, a cópia de palavras ou textos sem contextos ensinarão uma escrita viva, autoral e significativa? Afinal, para que ensinamos alguém a ler e a escrever? Para que produza frases ocas e estéreis como “A casa é bonita” ou “O Ivo viu a uva”? É para esta “alfabetização” que as crianças precisam ser treinadas? Isso é alfabetização? Em nossa concepção, não.

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Converter em problema o que sabemos e fazemos possibilita indagar: o que queremos quando propomos atividades que conduzem à lógica da (re)produção? Para Vygotsky (1998), a mão escreve o desejo da expressão da criança, e esse desejo da expressão precisa ser exercitado e cultivado para chegar a ser escrito.

“A escrita precisa se tornar uma necessidade da criança que vive numa sociedade que lê e escreve. Para isso a escrita precisa ser apresentada não como um ato motor, mas como uma atividade cultural complexa, considerando o uso social para o qual foi criada. Quando a criança convive com situações reais de leitura e escrita e quando, no início do processo, está a necessidade da criança escrever, a escrita fará sentido para ela” (Mello, 2006, p. 183-184).

Nas políticas públicas para a educação infantil, tanto no Referencial Curricular para Educação Infantil (Brasil, 1998) quanto nas Diretrizes Curriculares para Educação Infantil (Brasil, 1999), a prática cotidiana do brincar aparece como um dos eixos articuladores do trabalho pedagógico, o que evidencia a importância da atividade lúdica na articulação da prática pedagógica com crianças, ou seja, o brincar, que faz parte da vida da criança, não pode ser simplesmente ignorado na escola.

Porém, o que temos presenciado em muitas escolas de educação infantil, entre outras modalidades de ensino, são atividades de cópia, treino, memorização, repetição… Apostilados, livros, cadernos… E o brincar?

Brincar é a principal atividade de desenvolvimento da infância. Como aponta Borba (2006), é brincando que aprendemos a brincar. É interagindo com os outros, observando-os e participando das brincadeiras que vamos nos apropriando tanto dos processos básicos constitutivos do brincar como dos modos particulares de brincadeiras, ou seja, das rotinas, regras e universos simbólicos que caracterizam e especificam os grupos sociais em que nos inserimos.

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Quando a criança brinca de “faz de conta” ela vai compreendendo o princípio da representação: o mundo real e muitos outros mundos podem ser representados — e recriados — por meio da brincadeira, da fantasia, da contação de histórias, do desenho. Ela aprende que pensamentos, sentimentos, sonhos, entre outros, podem ser representados por meio das palavras. São essas palavras que queremos ensinar às crianças, mas para isso elas precisam brincar.

Para muitas escolas e professores, o brincar é um tempo “perdido”. Brincar é um tempo “improdutivo” para uma sociedade que “cismou” em correlacionar qualidade de ensino a quantidade de papel preenchido, mesmo quando sabemos que a quantidade de papel cuidadosamente arrumado em envelopes ou pastinhas não traduz ou sequer representa os conhecimentos produzidos pelas crianças.

É um jogo de adultos para adultos, no qual as crianças são apenas espectadores. Um jogo tão demagógico que a criança às vezes denuncia: “Quem pintou foi minha professora!”, “Quem recortou e colou foi minha mãe!”, “Meu trabalho não foi para o mural porque estava feio!”, “Minha mãe olha e depois joga tudo fora!”.

Há um pacto que ainda perdura e é (re)produzido nas práticas pedagógicas: preencher folhas, apostilados, livros e pastas com “trabalhinhos bonitos”. Mas será que a criança não aprende nada nesse processo? Claro que aprende. Aprende que a forma é mais importante que o conteúdo. Que quantidade é mais importante que qualidade. Que não importa muito o que você sabe ou não sabe, mas o que consegue parecer saber.

No entanto, os materiais pedagógicos, resultados de uma produção em série, ganham novos usos pelas crianças. Fronteiras são ultrapassadas e os objetos são transformados em outras coisas. Nos tempos furtivos, roubados, longe da vigilância dos adultos, as crianças também aprendem e também ensinam. Nas mãos das crianças, o desperdício é transformado, oferecendo outras enunciações, deslocamentos e interpretações.

Ainda no cotidiano escolar, na escassez do tempo para brincar, acompanhamos as subversões das crianças que brincavam entre uma atividade e outra ou, até mesmo, durante a realização da atividade.

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Despreocupadas de produzir, elas produzem outros mundos nas brincadeiras, com coisas desimportantes, encontrando fugas para driblar o instituído; sozinhas ou em pares, elas criam, conversam e interagem. Buscam os sentidos perdidos da escola no encontro com o outro. Entretanto, toda a riqueza produzida nesses encontros e suas possibilidades de integração com os planos de aula muitas vezes são ignorados. As crianças têm suas leituras de mundo, suas histórias de vida, saberes e fazeres, muitas vezes não valorizados.

Por isso é importante nos interrogarmos sobre os sentidos da leitura e da escrita pratica dos em nossas salas de aula quando impomos atividades fragmentadas, com leituras únicas e estéreis.

Freire (1992, p. 11-12) destaca: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não pode prescindir da continuidade da leitura daquele (a palavra que eu digo sai do mundo que estou lendo, mas a palavra que sai do mundo que eu estou lendo vai além dele). […] Se for capaz de escrever minha palavra, estarei, de certa forma, transformando o mundo. O ato de ler o mundo implica uma leitura dentro e fora de mim. Implica a relação que eu tenho com esse mundo”.

O que vivemos, muitas vezes, é a imposição de uma cultura que não (re)conhece as outras culturas, classificando-as como ilegítimas. Que encontra nesses sujeitos apenas o que lhes falta, suas “dificuldades”, para melhor identificá-los num pro-cesso de exclusão e produção do fracasso escolar.

Perguntamo-nos, ainda, se o objetivo de “adiantar” esse processo, im-pondo à educação infantil a responsabilidade de iniciar a “alfabetização”, nessa concepção restrita na qual esta vem sendo compreendida, inclusive pelo ensino fundamental, não seria adiantar os discursos sobre o fracasso dessas crianças.

Será que não começaremos a rotular como criança “problema” um menino ou menina que, aos 4 anos, só quer brincar? A encaminhar para psicólogas ou neurologistas crianças que lutam por seu direito à infância, ao seu tempo, a não ser um copista?

As crianças estão em um processo de alfabetização que começa muito antes de sua entrada na escola, no contato com uma sociedade letrada que se comunica por meio das diferentes linguagens — corporal, plástica, musical, escrita, televisiva, fotográfica, informatizada… A criança lê e usa essas linguagens para se expressar. Acreditamos que experiências com o mundo favorecem a aprendizagem da leitura e da escrita.

As crianças operam com diferentes linguagens e lógicas. Sendo muitas vezes infiéis ao prescrito, elas inventam outros mundos, em que as diferenças sejam possíveis, as vozes sejam ou-vidas e as escritas e leituras sejam criadoras.

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*Escrito por Andrea Serpa e Cristiana Callai, o artigo “Alfabetização na contemporaneidade” está na edição n° 53 da Revista Pátio Educação Infantil.


Sobre as autoras

Andrea Serpa é pedagoga, mestre e doutora em Educação e professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: andreserpaff@gmail.com

Cristiana Callai é pedagoga e professora da UFF. E-mail: criscallai@gmail.com

Redação Pátio
A redação da Pátio – Revista Pedagógica é formada por jornalistas do portal Desafios da Educação e educadores das áreas de ensino infantil, fundamental e médio.

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