No dia 11 de dezembro, o governo federal emitiu a Portaria 2.117/2019 que permite ampliar de 20% para até 40% a carga horária de educação a distância (EAD) de todos os cursos presenciais.
A implementação da nova regra depende de alcançar alguns pré-requisitos. O Ministério da Educação (MEC) exige que o curso presencial, para ter 40% da carga horária de EAD, tenha (durante a avaliação in loco do MEC) conceito igual ou superior a 3 nos indicadores relacionados à modalidade online. São eles:
- Metodologia;
- Atividades de tutoria;
- Ambiente virtual de aprendizagem (AVA ou LMS, na sigla em inglês);
- Tecnologias de informação e comunicação.
Além disso, qualquer mudança na grade do curso precisa ser informada previamente para alunos e candidatos. A flexibilização não é permitida durante um semestre letivo – apenas no começo. Assim, é provável que os primeiros efeitos da normativa sejam sentidos de forma gradual nos cursos e IES só segundo semestre de 2020; de maneira mais abrangente, a partir de 2021.
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Efeitos da portaria 2.117/2019
O mercado reagiu bem à novidade. Na semana de publicação da portaria, as ações das quatro empresas educacionais listadas na bolsa – Ânima, Cogna (ex-Kroton), Ser Educacional e Yduqs (ex-Estácio) fecharam em alta. O fenômeno deve-se à expectativa dos investidores de que a ampliação da carga horária EAD resulte em redução de custos nas IES, tanto com professores quanto com espaço físico.
De acordo com a Atmã Educar, os custos com folha salarial dos professores podem cair até 30% se de fato um curso chegar a 40% da carga horária a distância.
Outra vantagem é ligada à publicidade: antes da portaria 2.117/2019, um curso com mais de 20% da carga EAD não poderia ser considerado “presencial” em campanhas publicitárias direcionadas à captação de novos alunos. Agora, pode.
Há também um consenso de que a ampliação da carga horária EAD irá fortalecer a oferta de ensino híbrido, uma das principais tendências da educação do século 21. Também conhecido por blended learning, o ensino híbrido mescla o modelo presencial de ensino com o aprendizado remoto através do uso de tecnologias e metodologias ativas.
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Carga horária EAD em foco
Para avaliar os efeitos da portaria que permite ampliar a carga horária a distância de cursos presenciais para 40%, o Desafios da Educação consultou cinco profissionais da área educacional:
– Renato Janine Ribeiro, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e ex-ministro da Educação, autor de A Pátria Educadora em Colapso (Três Estrelas, 2018)
– Fernanda Furuno, cofundadora do Guia EAD Brasil, membro do Conselho de Inovação da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed) e colunista do portal Desafios da Educação
– Fredric Litto, professor emérito da USP e presidente da Abed
– Ilka Serra, coordenadora geral do Núcleo de Tecnologias para Educação da Universidade Estadual do Maranhão (Uema)
– Gustavo Hoffmann, diretor do Grupo A, fellow da Universidade Harvard e membro do conselho editorial do portal Desafios da Educação, onde escreve mensalmente
No atual contexto da educação no Brasil, qual é o impacto da ampliação de 20% para 40% de EAD na grade de cursos presenciais?
Renato Janine Ribeiro
“Não existe curso puramente presencial, no meu entender. O aluno tem tarefas fora da sala de aula, seja estudando em casa, lendo um livro ou assistindo videoaulas pela internet. Quando você já tem essas coisas adicionais, não vejo uma diferença significativa [em relação às mudanças propostas na portaria]. Essa parte não presencial, contudo, precisa fazer com que o aluno seja mais ativo, não pode ser uma aula baseada em passividade.”
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Fernanda Furuno
“Acredito que seja uma oportunidade para as IES repensarem os projetos pedagógicos dos seus cursos. É o momento de implementar metodologias e recursos que possam favorecer a aprendizagem dos alunos e o aproveitamento do tempo das modalidades presencial e a distância. Assim, acredito que em breve os cursos não serão mais rotulados como presenciais ou EAD.”
Gustavo Hoffmann
“Esta é uma importante e necessária mudança no marco regulatório. Não se trata apenas de aumentar a carga horária não presencial para 40%. Utilizar da melhor forma esses 40% é o grande desafio do ensino superior brasileiro. Embora não exista uma solução mágica para todas as IES, vejo aqui alguns fatores que são críticos para utilizar a portaria como oportunidade e obter sucesso com ensino híbrido: 1) ter uma boa modelagem no curso, com inserção de elementos inovadores; 2) ter um bom dimensionamento do conteúdo a ser disponibilizado, das interações síncronas e assíncronas mediadas com o uso de tecnologias e do que acontecerá nos momentos presenciais; 3) e aprimorar a formação docente, que é fundamental nesse processo.
Fredric Litto
“A medida de aumentar a carga horária EAD dos cursos presenciais foi boa porque ‘desengessou’ a cartilha do que é um curso de graduação a distância. Estávamos sofrendo excesso de regulamentação enquanto países do mundo não fazem essa diferenciação. Lá fora, o curso é avaliado em seu todo, o que é muito mais justo. Os critérios usados pelo MEC são universalizados, eles pedem os mesmos critérios, como artigos frequentes em humanidades e em exatas, mas a produção e o pensamento é diferente. A flexibilidade de 40% está ótima, mas o fato de a Medicina estar fora dessa portaria demonstra conservadorismo da categoria. Como se esses profissionais não usassem telemedicina ou recursos online para otimizar seus atendimentos. Mas essa resistência vai durar pouco tempo.”
Ilka Serra
“A portaria tem um impacto forte e positivo tanto no ensino superior quanto na educação básica. Esse impacto será demonstrado claramente nos avanços da consolidação de um modelo híbrido que integre as boas práticas do presencial com o virtual, estimulando novas práticas pedagógicas, alicerçadas na real possibilidade de uma educação personalizada e de qualidade, e incentivando trilhas educacionais customizadas, possibilitando que todos aprendam de maneira própria e contínua.”
Os cursos que adotarem a nova carga horária podem perder qualidade?
Renato Janine Ribeiro
“O que pode ser ruim é se essa mudança não estiver relacionada à qualidade do curso – ou seja, se ela for apenas um meio de reduzir gastos com professores. Esse é um problema porque, sobretudo no atual governo, há uma tendência de redução de gastos com professores. Isso seria negativo em relação a essa portaria.”
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Fernanda Furuno
“Sempre acreditei que as modalidades deveriam se complementar e que os recursos, conteúdos e atividades da EAD deveriam ser compartilhadas com o presencial (consequentemente conteúdos digitais, ambiente virtual, recursos tecnológicos, entre outros) de forma a complementar com as aulas presenciais, promovendo a sala de aula invertida e potenciando os momentos presenciais. Sempre ressaltei a importância da formação e mudança do mindset dos professores presenciais para o uso e a dinâmica nos meios digitais. Aquelas que não trabalhavam desta forma, isolando-se ou tratando de forma diferente os recursos utilizados nas duas modalidades, vão ter que correr.”_
Gustavo Hoffmann
“Acredito que o critério adotado pelo MEC (conceito igual ou superior a 3 em indicadores relacionados à modalidade online) seja mais burocrático do que estratégico. Ao meu ver, uma nota 3 nesses indicadores, ainda mais com um instrumento de avaliação altamente subjetivo, está longe de representar qualidade. Temos que criar, muito além do que exige o MEC, indicadores estratégicos para avaliarmos a eficácia deste novo modelo. Aprendizagem, por exemplo, é um deles, talvez o mais importante. Temos que comparar a aprendizagem dos alunos submetidos ao modelo híbrido (com o uso dos 40%, por exemplo) com a aprendizagem dos alunos submetidos ao modelo presencial e ao modelo 100% EAD. A partir desta comparação podemos tomar decisões mais qualificadas. Outros indicadores que considero importantes são NPS, empregabilidade, evasão, taxa de reprovação e percepção docente.. Hoje, boa parte das nossas decisões no ensino superior são baseadas em opiniões ou feelings. Deveríamos inserir mais evidências na nossa prática educacional. Estabelecer indicadores de performance e monitorá-los de uma forma sistematizada é um importante passo para mudarmos o patamar do nosso modelo educacional. Isso sim traz qualidade ao processo.
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Fredric Litto
“Vejo a avaliação do MEC como generalista e isso está errado. Na Abed, recebemos reclamações de IES sobre avaliadores do MEC que apontam coisas irrisórias. Outros que vem de instituições concorrentes, e tendo em vista a disputa entre as IES, isso é antiético. Ou seja, não há uma lógica de avaliação. Estamos muito longe de uma solução para esse problema. As minúcias de horas para isso ou para aquilo tiram a autonomia das IES, limitam e parece que que o MEC faz pouco caso da revisão as avaliações. Então muitas instituições são injustiçadas. Aqueles cursos que atraem menos alunos são um mercado para pequenas faculdades, mas elas acabam prejudicadas pois as grandes já têm chancela com cursos tradicionais de medicina, direito, etc. O MEC não considera a regionalidade, a cultura local. A mudança de 40% vai permitir mais experimentação na proporção. Pode ser que uma IES tente oferecer os 40% de práticas EAD e, passado um período, não se adapte e volte aos 10%, por exemplo. Mas é importante que as IES tenham essa margem de experimentação, pois isso aumenta possibilidade de criatividade de formatos de ensino. Como o MEC define atualmente é limitante, mas com essa maior liberdade cada instituição vai poder se autorregular pois sabe da sua qualidade.”
Ilka Serra (na foto, acima)
“Nos últimos anos, a demanda por modelos educacionais inovadores tem crescido exponencialmente, graças sobretudo ao uso das tecnologias digitais e das metodologias ativas associadas, em muitos casos a modalidade EAD. De maneira exitosa, o Brasil está ativo e acompanhando, com garantia de qualidade, esse movimento educacional. Penso que estamos trilhando em direção à um modelo educacional flexível e híbrido que fará a junção de elementos das duas modalidades de ensino, presencial e a distância. E, nesse contexto, estamos aprendendo a atender, com qualidade e de forma personalizada, grandes demandas que respeitem as particularidades dos nossos alunos.”
Confira a série “Tendências da educação para 2020”
Gostaria que a matéria desse espaço ao contraditório, assim fortaleceríamos os posicionamentos a favor e contra ao tema. A qualidade da EAD ofertada no Brasil está longe de ser unanimidade, sendo necessário o enfrentamento desta questão.
Os professores, que são a peça fundamental da educação não foram ouvidos, não tiveram espaço para opinar.
Na verdade o que ocorre é a precarização do ensino superior, uma vez que o aluno recebe uma “apostila”, para estudar termos técnicos, quando tem sérias dificuldades de compreensão.
Sou professor universitário em um curso de música. Com frequência recebo críticas do sistema EAD e muitas vezes o próprio portal do aluno. O que realmente preocupa é o fato de, no Brasil, estas mudanças estarem atreladas apenas a redução de custos da instituição e reduzir ao máximo o número de professores trabalhando. Abrir uma nova faculdade hoje em dia se tornou mais fácil e um grande negócio. Mas quem sempre perde são os professores e os alunos, mesmo sem perceber. Nem viu entrar no assunto sobre compreensão e interpretação de termos, ou de situações que exijam maior atenção dos alunos. Eles têm bastante dificuldade e pouca vontade de se aprofundar nos assuntos.