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A médica psiquiatra Elisa Brietzke se formou em 1996 em uma faculdade federal no Sul do País. Quando ingressou na universidade, aos 17 anos, ela foi submetida a trotes que sexualizavam as calouras e tinham cunho vexatório.

Na época, ela não compreendia o que era um ambiente machista. Mesmo assim, sabia que aquilo não era normal. “Desde muito cedo, é normalizada a ideia de que se você for uma mulher vai sofrer algum tipo de abuso sexual, desde casos extremos a comentários e toques inadequados”, disse à Folha de São Paulo.

Assédio sexual na faculdade

Elisa não foi a primeira e, infelizmente, não será a última mulher vítima de assédio sexual dentro de uma instituição de ensino superior (IES). As imagens do torneio universitário Calomed, realizado em São Carlos, no interior paulista, deixaram isso bem explícito.

Estava tudo normal até que um grupo de alunos da Universidade Santo Amaro (Unisa) e do Centro Universitário São Camilo realizaram atos obscenos na arquibancada do ginásio Milton Olaio Filho.

Na ocasião, estudantes de Medicina que estavam assistindo uma partida de vôlei feminina baixaram as calças e exibiram o órgão genital. Também realizaram uma “volta olímpica”, sem parte da roupa. O torneio acadêmico ocorreu em abril deste ano, mas o episódio só se tornou público em setembro, quando viralizou nas redes sociais.

As cenas geraram revolta e resultaram na expulsão de 15 alunos da Unisa. Porém, dias depois, a Justiça Federal de São Paulo determinou a reintegração dos estudantes. Já o Centro Universitário São Camilo decidiu não expulsar, mas submeter os envolvidos a medidas socioeducativas.

“Seria injusto da nossa parte expulsarmos apenas alguns e deixarmos outros que poderiam ter participado dessas ações, mas não apareceram nas imagens divulgadas […] Também levamos em conta que esse comportamento não é exclusivo de apenas uma dezena de alunos. É uma questão estrutural, que precisa ser mudada de forma eficaz, mesmo que tais ações aconteçam em espaços externos à universidade”, dizia em nota.

Realmente, essa não é a primeira vez que atos violentos acontecem: há registro de brigas generalizadas, diversos casos de assédio sexual e um histórico de décadas de agressões e humilhação em trotes – até com registro de morte.

Uma questão cultural

Desde que o caso da Calomed virou notícia, médicos e alunos dizem que atos obscenos são impostos por veteranos e que o clima de hostilidade pode contribuir para a normalização de abusos e perpetuação da hierarquia violenta dentro do curso.

Apesar de existir muitos relatos de situações iguais a essa no ambiente acadêmico, a prevenção e o enfrentamento de casos de assédio sexual caminham a passos lentos.

Combater o assédio sexual dentro das faculdades é uma obrigação das IES que pretendem formar profissionais mais humanos e qualificados. Crédito: Divulgação//Adufes

Uma pesquisa com 44 instituições federais de ensino superior mostrou que em 70% delas não há qualquer medida de combate ao assédio sexual. E a maioria não desenvolve programas de prevenção, mesmo diante de um problema que afeta a segurança, o bem-estar e o desempenho dos estudantes.

No contexto brasileiro, é importante ressaltar que esse tipo de crime está enraizado em aspectos culturais e sociais. O relatório 1 da “Pesquisa sobre Percepção de Assédio Moral e Sexual Relativo a Gênero na UFRGS (2020)”, por exemplo, mostra que as mulheres negras são as mais assediadas dentro da universidade gaúcha. E, em 90% dos casos, esse tipo de agressão é cometido por homens — e raramente denunciado.


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Como combater o assédio sexual na faculdade

O caso ocorrido na Calomed motivou uma apuração da Polícia Civil, e o Ministério da Educação (MEC) notificou a Unisa a prestar esclarecimentos. A repercussão dos vídeos também renovou a discussão sobre violências cometidas em eventos universitários.

Apesar do cenário pouco promissor, é preciso criar um ambiente educacional em que todos se sintam respeitados e livres de qualquer forma de assédio. Mas como combater um problema que não é exclusivo das instituições de ensino superior?

O primeiro passo é estar preparado para quando situações como essas acontecerem — porque, infelizmente, elas irão acontecer.

Acolher as pessoas agredidas, oferecer apoio e atendimento médico, psicológico e social são ações necessárias. Também é importante que a queixa da vítima se transforme em denúncia e seja efetivamente investigada e, se procedente, que o autor de agressões seja responsabilizado.

Mudar um comportamento estrutural é um desafio, mas não é algo impossível. Treinamentos, cursos, debates, um código de ética e regulamentos que tratem explicitamente de abuso sexual são apenas algumas das dezenas iniciativas que as IES devem adotar.

A prevenção precisa ser um objetivo de toda comunidade acadêmica. Mas cabe às instituições de ensino superior se posicionarem de modo enfático ao lado do combate ao assédio sexual e moral — na teoria e na postura pública de seus gestores e docentes.

Soft skills nas faculdades de Medicina

Ensinar soft skills também pode ser um caminho interessante no combate ao assédio sexual dentro e fora das IES.

Há tempos que especialistas defendem o ensino das competências socioemocionais nos cursos de Medicina. Isso porque abordam questões comportamentais, relacionadas à maneira como as pessoas lidam com as outras, com elas mesmas e com as tarefas que precisam desenvolver.

Se colocar no lugar do outro, ter empatia e manter relacionamentos interpessoais são habilidades cruciais para formação de um futuro médico, uma vez que esse profissional terá que lidar com pessoas de diferentes raças, gêneros e condições financeiras.

As soft skills, sozinhas, podem não evitar que novos casos de assédio sexual aconteçam, mas são habilidades que não devem ser deixadas de lado. Formar profissionais mais humanos, empáticos e respeitosos é uma necessidade, assim como combater o assédio sexual dentro das faculdades.


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