Banhada pela Baía de Marajó, a pacata Colares não é muito diferente de outras cidadezinhas do interior do Brasil. Com 12 mil habitantes, o município paraense vive do turismo, graças a suas belezas naturais – e também da inusitada fama de “cidade dos ETs”, motivada por uma operação militar que investigou a presença de OVNIs na região na década de 1970. Mas, no dia a dia, os colarenses têm preocupações diferentes. Entre elas, a baixa conectividade de internet.
Que o diga a professora Rosivane Silva da Silva, 31 anos. Nascida em Guajará, uma comunidade rural do município, ela deixou Colares para concluir o Ensino Médio em Vigia de Nazaré, onde também se formou em Letras, pela Universidade Estadual do Pará (Uepa). De volta à cidade natal para lecionar, decidiu fazer uma segunda graduação, em Pedagogia, para ter mais oportunidades em concursos públicos. Sem tempo livre para atividades presenciais, optou pela educação a distância (EaD). Foi aí que sentiu a falta de uma conexão de qualidade.
“Minha mãe sempre investiu nos nossos estudos. Comprou antena específica para a zona rural, roteador, fez um bom plano de internet, mas não deu muito certo. O sinal era péssimo, caía demais”, lembra a educadora. A solução foi pegar a moto e se deslocar para a região portuária da cidade, onde a conexão era mais estável.
“Lá tem uma pracinha onde eu ficava estudando. Baixava o conteúdo da plataforma EaD no celular e depois passava para o computador. Porque se dependesse da internet da minha casa, não tinha como”, explica ela, que acabou sendo aprovada em um concurso e hoje mora em Belém.
Em tempos de hiperconectividade, histórias como a de Rosivane Silva não deveriam ser comuns – mas ainda são. E mostram que o acesso à internet ainda é um privilégio no Brasil.
Desigualdade em dobro
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), do IBGE, que analisou dados relativos ao quarto trimestre de 2021, 28,2 milhões de pessoas não se conectaram à rede naquele ano. No sistema educacional, como era de se imaginar, as diferenças entre público e privado ficaram evidentes. Cerca de 80% dos alunos das escolas pagas utilizaram a rede no período, enquanto entre os estudantes do sistema público esse índice chegou a apenas 38%.
No Ensino Superior, evidentemente, o recorte é bem menor: apenas 2% dos estudantes universitários (cerca de 155 mil) não tinham acesso domiciliar, seja por banda larga, seja por redes móveis. Ainda assim, é um índice que preocupa, por vários motivos.
O primeiro deles é que essa situação atinge minorias historicamente prejudicadas quando o assunto é acesso à educação. Ao destrinchar os resultados da Pnad, a nota técnica Universidades federais na pandemia da Covid-19: a falta de acesso à internet interdita mesmo o ensino?, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), deixa claro quem são os mais afetados.
“Destaque-se que a exclusão digital de estudantes de educação superior tem cor e renda bem pronunciadas: cerca de dois terços desses estudantes eram pessoas negras ou indígenas, como também eram cerca de dois terços as que tinham renda domiciliar per capita de até um salário-mínimo”, diz o texto.
Por consequência, a ascensão econômica dessa população também é dificultada, uma vez que, segundo a Pnad, o rendimento médio per capita nas residências em que havia uso de internet era de R$ 1,5 mil por mês – praticamente o dobro em relação aos que não tinham acesso (R$ 795,00).
“São estudantes que já se encontram em desvantagem de oportunidades em comparação com quem teve acesso ao ensino remoto. Nesse sentido, a exclusão digital só aumenta a desigualdade”, afirma Remi Castioni, professor do Departamento de Planejamento e Administração da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e um dos autores do estudo do Ipea.
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Inclusão x evasão
Outro ponto a ser destacado é que, de certa forma, esse baixo índice de universitários desconectados dá uma falsa sensação de inclusão. É o que aponta a economista Claudia Costin, fundadora e diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV Ceipe).
“Entre os adultos brasileiros de 25 a 34 anos, só 21% têm ensino superior. Ou seja, é um percentual muito pequeno que conclui a faculdade. Grande parte acaba abandonando os estudos”, observa.
Os dados citados por Costin constam em um levantamento divulgado no ano passado pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A pesquisa indica ainda que, dos estudantes que ingressam no Ensino Superior, somente 33% conseguem terminar a graduação no tempo esperado. E um terço dos que não se formaram nesse período abandonam o curso após três anos.
Segundo a diretora do FGV Ceipe, facilitar o acesso à internet é uma forma de reduzir essa evasão. “As universidades até proporcionam equipamentos, mas se o aluno trabalha o dia todo, só pode frequentar aulas à noite ou então opta pela EaD. Na educação a distância é preciso ter muita disciplina e motivação, o que não é fácil nesse contexto. E, sem uma boa conectividade, fazer um curso de graduação se torna ainda mais desafiador”, pondera.
O efeito pandemia
A disparidade no acesso à internet ficou mais evidente durante o auge da pandemia de Covid-19, quando as aulas presenciais foram substituídas por atividades remotas. Entre avaliações e exercícios, alunos e professores tiveram que aprender “na marra” a lidar com novas tecnologias de aprendizagem – um processo que já aconteceria naturalmente, mas não na velocidade como ocorreu.
“A Covid provocou muitas perdas e trouxe muitos desafios. Sob o aspecto da educação, fomos obrigados a trabalhar e aprender a distância, e isso provocou uma aceleração no processo de inclusão digital, mesmo que de forma improvisada. Agora o que precisamos é criar oportunidades para que as pessoas tenham acesso à tecnologia”, acredita Costin.
Para Castioni, a pandemia escancarou o óbvio: é preciso ampliar a conectividade de regiões remotas do Brasil. “No nosso estudo reforçamos que simplesmente distribuir chips de dados para esses alunos não adiantava nada se sequer há sinal de internet nesses lugares”, argumenta.
O Ipea estimou que seria necessário investir pelo menos R$ 3,9 bilhões na aquisição de equipamentos – isso para não falar em outros custos embutidos nesse processo. E, mesmo que os recursos fossem disponibilizados de imediato, milhares de estudantes seriam deixados de fora por não terem acesso a uma infraestrutura mínima que garanta essa conectividade.
O único meio de mudar esse cenário, segundo o professor da UnB, é apostar em políticas públicas consistentes. “De um modo geral, falta uma governança no que diz respeito às iniciativas no âmbito de prover acesso à internet nas escolas. No primeiro governo Lula, tivemos a criação de um projeto de internet banda larga, mas de lá pra cá, houve uma proliferação de ações, com pouco monitoramento sobre elas. Por isso é preciso ter uma ação integrada. Esperamos que isso aconteça com o novo plano de conectividade apresentado em janeiro. Só assim vamos conseguir levar a internet a quem precisa”, defende.
A nova política sobre educação digital
O plano citado pelo professor Remi Castioni é a Política Nacional de Educação Digital. O texto, com origem no Projeto de Lei 4513/20, da deputada Angela Amin (PP-SC), e sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, busca “promover a inclusão, a capacitação, a especialização, a pesquisa e a educação escolar digitais”.
Entre outros aspectos, o projeto altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) para fixar a educação digital como dever do Estado por meio da “garantia de conectividade à internet de alta velocidade de todas as instituições públicas de ensinos básico e superior”. Os recursos virão de dotações orçamentárias da União, dos estados e dos municípios, de dois fundos específicos e de doações, públicas ou privadas.
Claudia Costin demonstra otimismo em relação à proposta, principalmente por considerar que ela dialoga com o novo mercado de trabalho e a revolução 4.0. Para ela, a lei traz uma nova visão de conectividade, destinando recursos para que as escolas sejam conectadas não só para “efeitos administrativos, mas também pedagógicos”.
“Precisamos formar as pessoas para usar a tecnologia, e isso não é só fazer chamadas de vídeo ou navegar nas redes sociais. É prepará-las para diferenciar fatos de opiniões, ter a capacidade de criar conteúdos digitais, fazer programação e tantas outras competências que se tornarão cada vez mais importantes nesse novo tempo”, argumenta. “E o caminho para essa mudança exige que tenhamos uma internet mais acessível para todo mundo.”
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*Colaborou Renata Cardoso
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