Há um alerta vermelho na educação brasileira. E ele está ligado há anos: o excesso de burocracia.
Com cada vez menos tempo para se dedicar ao tripé ensino, pesquisa e extensão, algumas das mentes mais brilhantes do país passam horas realizando trabalhos administrativos.
Não se trata somente de um caso de “desvio de função”. O cenário causa perda de verbas, adoecimento mental, falta de tempo para o preparo de aulas e até a fuga de cientistas para outros países.
Menos tempo para o que realmente importa
“Eu sou completamente apaixonado pela docência. A melhor coisa que eu faço na vida é dar aula. Mas eu também não tenho dúvida que a pior parte de ser professor é a burocracia.”
A frase acima é de Marco Bonito, doutor em Ciência da Comunicação e professor adjunto da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), com mais de 20 anos de carreira no ensino superior.
“A burocracia toma a maior parte do tempo para as coisas que eu sou pior. Em contrapartida, para as coisas que eu sou melhor – que são planejar aula, organizar um projeto, fazer pesquisa – eu tenho cada vez menos tempo”, desabafa o docente.
Essa não é uma questão isolada ou recente. Segundo Bonito, ao longo das últimas décadas, mesmo com novas tecnologias, a lista de tarefas burocráticas só aumenta.
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Rotina
Está enganado quem pensa que a atuação de um professor no ensino superior se resume a preparar e dar aulas. Boa parte da jornada de trabalho é ocupada por um sem fim de e-mails informativos, demandas institucionais urgentes, preenchimento de formulários e entrega de relatórios.
Se o professor for pesquisador, o cenário é ainda pior. Projetos, eventos, propostas de extensão e a colaboração com colegas de outras instituições se tornam uma via sacra em meio a documentos, informações e orçamentos – cada um com suas especificidades.
Assim, pessoas qualificadas passam boa parte do tempo lidando com burocracia e prestação de contas. “Se formos somar as horas perdidas de todos os professores do Brasil, vamos ver o quanto estamos deixando de produzir coisas importantes para o país”, salienta Bonito.
E essa conta foi feita. Um estudo realizado em 2017 estima que pesquisadores brasileiros perdem, em média, cerca de 35% do seu tempo preenchendo formulários, pesquisando preços, pedindo notas fiscais, entre outras atividades do tipo.
No exterior, o cenário é diferente. O químico Pedro Henrique Camargo já estava no topo da carreira acadêmica como professor titular do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) quando deixou o país em 2019, rumo à Finlândia.
Lá, ele sente saudades do Brasil, mas não das dificuldades que enfrentava para fazer ciência. “Aqui eu só escrevo projetos, recebo investimento e faço pesquisa. O resto é a universidade que faz. Tem todo um sistema de apoio, que te empurra para frente o tempo todo”, contou Camargo à revista Piauí.
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Impactos na saúde e na aprendizagem
A burocracia enfrentada pelos professores muitas vezes acaba virando uma questão de saúde e reverberando também na aprendizagem dos estudantes.
“Quando o docente fica muito imerso em atos mecânicos, ele pode se sentir desconectado do trabalho e, por consequência, desmotivado, cansado, estressado”, explica a psicóloga de Gestão de Pessoas na Unipampa, Camila Perez. Segundo ela, casos de depressão e Síndrome de Burnout são diagnósticos frequentes nesse público.
Entre outros motivos, isso acontece porque os docentes precisam estender as jornadas para além da sua carga horária, trabalhando quando deveriam estar se alimentando, descansando ou aproveitando o tempo com a sua família.
A estafa mental e a quantidade de tarefas também fazem com que os professores fiquem sem tempo para se atualizarem, o que pode influenciar na preparação das aulas e na postura em sala, causando prejuízos na aprendizagem dos alunos.
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Um nó difícil de desatar
A burocracia faz parte das rotinas administrativas das instituições. Para reverter a situação atual, é necessária uma mudança cultural, além de investimentos em sistemas mais eficientes e pessoal capacitado.
Quando falamos em pesquisa, a questão é ainda mais complexa, uma vez que a maioria dos casos envolve instituições e verbas públicas. Nesse âmbito, o Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação, promulgado em 11 de janeiro de 2016, tentou – sem sucesso – reduzir a burocracia em atividades de pesquisa e desenvolvimento.
Entre as medidas prevista no marco, estão a redução de impostos, simplificação de regras de importação, dispensa da necessidade de licitações para compra de insumos e equipamentos de pesquisa. Além disso, o documento facilita o compartilhamento de equipamentos e laboratórios com empresas privadas e aumenta o número de horas que os professores podem dedicar a atividade fora do ambiente acadêmico.
O problema é que essas mudanças não foram incorporadas ao dia a dia dos órgãos de controle, das agências de fomento, nem mesmo das universidades e institutos de pesquisa. “Os órgãos de controle não se atualizaram. Em alguns aspectos, é como se o marco legal nem existisse”, afirma a vice coordenadora da Agência USP de Inovação, Geciane Porto, em entrevista ao Jornal da USP.
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