Por Rui Fava*
Com o progresso da tecnologia digital cognitiva, big data e inteligência artificial, o mundo se tornou mais complexo e caótico e a missão crucial da escola passou ser a de amplificar a capacidade do indivíduo em lidar com a incerteza, opacidade, estados complexos e caóticos, enfim, desenvolver competências.
A covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus, amplificou e catalisou esse processo, proporcionando aos stakeholders da educação o incremento da capacidade de enfrentar situações inéditas. Extravasou para os aprendizes que o futuro demandará de profissionais que reajam às situações inusitadas – afinal, tudo que é previsível um algoritmo ou robô inteligente será capaz de realizar melhor que qualquer humano.
Tais fatos causam desconforto, angústia e aflição. Contudo, o aprendizado é que a vida é feita de surpresas constantes. O desafio para a escola é desenvolver profissionais nexialistas munidos com as competências reivindicadas por essa nova plataforma digital cognitiva que está causando proeminentes mutações.
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De modo geral, competência refere-se aos requisitos de desempenho de uma pessoa (e.g., atributos, habilidades e vontade) que se revelam por meio do gerenciamento auto-organizado de situações novas, não-rotineiras, ambíguas, problemáticas que exigem ações concretas.
Em tais circunstâncias, o indivíduo deve avaliar e gerar conhecimento contextualmente para saber o que fazer. Com isso pode-se deduzir que competência também é a disposição para a ação auto-organizada que se torna exequível no momento em que acontecem situações inéditas e não frequentes.
A auto-organização relaciona-se a uma ampla cadeia de processos de formação de padrões e espaço-temporais no mundo físico, químico, biológico e comportamental. A organização está correlacionada a um aumento na estrutura, nos componentes do sistema e no nível de conformação das ações, enquanto a auto-organização refere-se ao processo que acarreta esse acréscimo, bem como, o ajuste de uma parte do sistema que pode viabilizar uma função específica.
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O sistema muitas vezes é desestabilizado ou sofre mutações e necessita se adaptar para continuar exercendo sua função. Esta capacidade de adaptação confere a robustez, outra propriedade dos sistemas auto-organizados.
A adaptabilidade implica na necessidade de exteriorizar uma vasta pluralidade de comportamentos (atratores). Se o atrator for inusitado e obscuro o sistema irá converter-se em babélico e incontrolável. Se for um ponto fixo, se tornará seletivo e inflexível, necessitando se ajustar entre a conformação e o caos.
A rapidez das transformações, estimuladas pela tecnologia digital cognitiva (TDC) e, recentemente catalisada pelo coronavírus, estão induzindo a auto-organização em inúmeras rotinas, hábitos e comportamentos humanos que, amiudadamente transitam desapercebidas, razão pela qual seja conveniente adequar o adágio popular “o tempo conserta tudo”, para o “o tempo proporciona a auto-organização”. Ela está presente diuturnamente na rotina e no cotidiano da sociedade digital. Essa dinâmica poderá ocorrer de forma abscôndita e imperceptível. Quando se constata, a metamorfose já ocorreu sem obsecração explicitada externa (e.g., mutação da aula presencial para o ambiente digital).
A auto-organização é inescrupulosa, não possui um coração comovente, é implacável, inflexível, insensível. Com ou sem a participação externa ela inevitavelmente ocorrerá, sem se importar com a angústia, aflição e sofrimento que está causando.
Utiliza-se das crises para agir –sejam elas crises financeiras, econômicas, ideológicas ou de saúde, como é o caso do coronavírus. Tal fato provoca dor social, visto que as pessoas desvendam que os paradigmas se alteraram sem ingerência e mediação delas e, portanto, insistem em conviver com arquétipos ultrapassados, ineficientes e inúteis.
Alguns setores se atentam as mudanças da covid-19 e celeremente se adaptam (e.g., o acesso à música, vídeos e filmes por aplicativos streamings). Outros, como a educação, tentam resistir, deixando a auto-organização agir por si própria, muitas vezes acarretando ineficiências em seus processos, formando profissionais inúteis, sem inteligência de mercado e coerentes aos novos paradigmas provocados pela revolução digital cognitiva. Tais fatos provocam desalento, desistência, abandono e evasão dos estudantes.
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Covid-19 e outras crises
Catástrofes naturais e tragédias são rotineiras na evolução humana. Por vezes, essas casualidades forjam análises e reflexões e, eventualmente mutações e auto-organização irreversíveis.
Contudo, até então, nenhuma calamidade, por mais atroz que tenha sido, alterou ao mesmo tempo aspectos sociais, comportamentais, econômicos e ambientais, pilares que definem a sadia convivência em sociedade. Muitas dessas transmutações foram capitalizadas por guerras, eventos, epidemias e acontecimentos que chocaram a humanidade.
Causada por uma bactéria, transmitida através de pulgas dos ratos e outros roedores, a Peste Bubónica, também conhecida como Peste Negra, foi a pandemia mais devastadora da humanidade. Ocorrida entre 1347 e 1351, segundo dados do American Museum of Natural History, proporcionou um raro declínio da população mundial da época, caindo de 385 para 315 milhões de habitantes.
Também letal e devastador, no final da primeira Guerra Mundial, em 1918, o vírus influenza A, do subtipo H1N1, denominado gripe espanhola, afetou mais de 50% da população mundial. O número de mortes, segundo a jornalista e escritora norte-americana Gina Kolata, ficou entre 20 e 100 milhões de pessoas.
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O reator da central nuclear da usina de Chernobyl, localizado na cidade de Pripyat, na Ucrânia, explodiu em abril de 1986, e sua imensa fumaça radioativa, contaminou pessoas, animais e o meio ambiente de uma vasta extensão da Europa.
Mesmo passados mais de 30 anos da tragédia, o drama de Chernobyl continua causando sérios problemas de saúde. Segundo o Greenpeace, mais de 100 mil pessoas poderão morrer vítimas de várias formas de câncer, causadas pela radiação do acidente nuclear.
Numa manhã do dia 11 de setembro de 2001, dezenove terroristas da al-Qaeda sequestraram quatro aviões e propositadamente colidiram com dois deles contra as Torres Gêmeas, na cidade de Nova York. Cerca de três mil pessoas morreram durante os ataques.
Em resposta, os americanos bombardearam o Afeganistão para derrubar o Taleban, grupo que abrigou os terroristas da al-Qaeda e endureceu as regras alfandegárias. Em 2011, os EUA anunciaram a morte de Osama Bin Laden, líder da rede al-Qaeda, após quase 10 anos de caça ao terrorista.
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Apesar de mais fatais e cataclísmicas, as catástrofes anteriores não se comparam ao que estamos vivenciando com a pandemia da covid-19 – a primeira a atingir ao que o pensador canadense Marshall McLuhan denomina de aldeia global interconectada, uma vez que nessas épocas o mundo não era tão plugado como é hoje.
O que irá ocorrer quando tudo retornar ao normal? Simplesmente não irá voltar ao habitual.
A transmutação é inconversível e não será trivial. A economia possivelmente irá se recuperar em um ou mais anos, mas as mutações comportamentais e de consumo serão duradouras.
Teremos a oportunidade de criar padrões melhores, paradigmas estes que serão a confirmação de tendências que a tecnologia digital cognitiva já vinha desenhando há algum tempo, mas que muitos setores, incluindo a educação, se repudiavam aperceber. Foi necessária uma síndrome gripal respiratória global para ser o catalizador que faltava para a auto-organização intervir.
Para os arquétipos da auto-organização em andamento, não basta que o negócio sobreviva – o que já é um enorme desafio. O Covid-19 acelerou a mutação da cultura organizacional para todos os negócios, inclusive na educação, contudo, vale salientar que a grande metamorfose não se encontra na tecnologia, esta já existia antes da pandemia, mas no comportamento humano em utilizar tais tecnologias.
A conduta e a maneira de agir nestes tempos de extremos, apontará se, no final, estará melhor e maior ou pior e menor. Não existirá ação de marketing que poderá alterar essa percepção. A auto-organização, está exigindo que se dê importância a relacionamentos pessoais que, antes, estavam se tornando cada vez mais digitais, distantes e empedernidos. Está fazendo com que se valorize os trabalhos essenciais para a vida em sociedade e a educação é fundamental para a sobrevivência em tempos de TDC.
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Definitivamente a pandemia encerra a era industrial, em outras palavras, todas as esteiras e processos que podem ser automatizados serão acelerados, fazendo com que o remoto ganhe essencialidade. Contudo, os humanos são seres que necessitam de interação, relacionamentos, energia e, mesmo no remoto, muitas ocupações ainda serão essenciais, como é o caso, entre outros, dos profissionais da saúde e do professor.
Literalmente, todas as organizações ligadas à educação estão sendo obrigadas a refazer e inovar suas estratégias na forma de ofertar instrução e lidar com o Covid-19. Depois que essa calamidade passar, as escolas não irão amontoar num armário os investimentos que realizaram durante a crise.
A educação digital irá se sedimentar, os currículos serão adaptados para desenvolver competências, as metodologias híbridas ganharão importância e o processo de ensino, desenvolvimento e aprendizagem se sedimentará.
Após a pandemia as pessoas sairão mais conscientes da importância da conexão lídima e da empatia entre seus stakeholders e contemplarão com um novo olhar para o potencial da tecnologia como credenciadora de negócios, de aprendizado e da promoção do bem comum. As escolas terão a certeza de que, mesmo à distância, é possível contar com a tecnologia para que os educadores continuem ensinando, desenvolvendo e trabalhando remotamente, em colaboração, com agilidade, eficiência e eficácia na aprendizagem.
Segundo o jornalista e escritor americano Thomas Friedman, por volta de 2000, adentramos na globalização 3.0, que, encolheu o tamanho do mundo de pequeno para minúsculo, como também, ao mesmo tempo, aplanou o terreno.
O coronavírus mais que aplainou, tornou o mundo um só, sem fronteiras, unido em um só fito: sobreviver. Esse propósito irá chocalhar a maneira de interação, cooperação e empatia entre as pessoas em todo o mundo.
Com as conexões abertas e integrais passamos a formar um ecossistema único, com uma relação de interdependência sem precedentes. Esse conceito de aldeia universal foi avigorado nessa exaustiva crise da pandemia. Quem consolida tal auto-organização compulsória é um corpúsculo vívido denominada covid-19.
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Sobre o autor
Rui Fava é sócio-fundador da Atmã Educar, ex-reitor da Unic, da Unopar e vice-presidente acadêmico da Kroton. É autor de diversos livros, como Trabalho, Educação e Inteligência Artificial: A Era do Indivíduo Versátil, Educação 3.0: Como Aplicar o PDCA nas Instituições de Ensino e Educação para o século 21: a era do indivíduo digital.
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