No pátio de uma escola de educação infantil, crianças observam uma árvore de caramboleira no centro do jardim. Elas estão descobrindo os ciclos do fruto daquela planta. Tudo é objeto de estudo: fazer desenhos de observação da planta, perceber a diferente paleta de cores das folhas e do fruto, pintar, modelar em argila… Tudo isso são experiências para a construção significativa da aprendizagem.
A cena se passa na escola de educação infantil Ateliê Carambola, localizada na capital paulista. Mas poderia retratar o dia a dia das crianças de Reggio Emilia, cidade no Norte da Itália e berço da abordagem educativa homônima que inspira escolas brasileiras e centenas de instituições ao redor do mundo.
A abordagem nasceu após a Segunda Guerra, em 1945, quando famílias italianas devastadas pelo conflito se organizaram para construir escolas a partir dos escombros da cidade.
Loris Malaguzzi, um pedagogo visionário, abraçou a iniciativa. Ele se propôs a construir uma proposta educacional com o apoio da comunidade – acreditando que, ao oferecer uma outra oportunidade educativa às crianças, estariam transformando a sociedade. A iniciativa deu tão certo que a abordagem se tornou referência mundial em educação infantil.
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Como fazer Reggio fora de Reggio
A abordagem de Reggio Emilia ganhou terreno no Brasil nos anos 1990, em discussões acadêmicas embaladas pelo sucesso da mostra internacional I cento linguaggi dei bambini (As cem linguagens das crianças), idealizada por Malaguzzi e que circulou ao redor do mundo, inclusive no Brasil.
“Começamos a discutir essa nova abordagem pedagógica de educação infantil após lermos um texto da professora Ana Lúcia Goulart de Faria, de 1994, em que ela narra suas percepções acerca das creches no norte da Itália”, relembra Paulo Fochi, professor do curso de Pedagogia e coordenador do curso de especialização em Educação Infantil da Unisinos, no Rio Grande do Sul.
Um pouco mais tarde, a partir da publicação do primeiro volume do livro As cem linguagens da criança, em 1999, organizado pelos pesquisadores americanos Carolyn Edwards, Lella Gandini e George Forman, as discussões sobre o trabalho desenvolvido nas escolas municipais infantis de Reggio Emilia começaram a se popularizar mais e mais. Até que, na metade da primeira década dos anos 2000, delegações brasileiras começam a visitar as escolas na Itália.
Doutor em Educação na linha de Didática e Formação de Professores (USP), além de autor do livro Afinal, o que os Bebês Fazem no Berçário?, Fochi afirma ao Desafios da Educação que “não é possível fazer Reggio fora de Reggio”. A explicação está no contexto político-social.
“O modo como essa abordagem educativa foi se constituindo está diretamente atrelado ao cenário social. O modo de fazer e pensar a pedagogia desenvolvida não está desconectada da visão de homem e de sociedade que Malaguzzi e seus companheiros de trabalho acreditam.“
Para o educador, que também foi um dos assessores para a construção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Infantil, o que podemos fazer fora de Reggio Emilia é aprender com as práticas desenvolvidas naquela contexto. Ou seja, reconhecer quais são os princípios estruturantes que orientam aquela abordagem e construir os nossos.
“Há muito o que aprender com Reggio, especialmente, o esforço em ter construído uma abordagem educacional e de sustenta-la a tantos anos mantendo o ideal de escola pública, laica e de qualidade.”
Fochi ressalta que, “nos demais países onde ocorrem experiências educativas inspiradas no modelo reggiano, parte expressiva dessas experiências se dão em escolas privadas. Aqui, nós já temos uma grande diferença do porque que não se faz Reggio fora de Reggio. O projeto educativo da cidade italiana é um projeto de sociedade, não um projeto empresarial”.
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Documentação pedagógica
No Brasil, existem algumas experiências inspiradas na abordagem de Reggio Emilia. O Observatório da Cultura Infantil – OBECI, uma comunidade de apoio ao desenvolvimento profissional idealizada por Paulo Fochi, que envolve seis escolas do sul do Brasil, três públicas e três privadas, se inspiram no conceito da documentação pedagógica como estratégia para investigar o cotidiano e para tornar visível as aprendizagens das crianças.
Esse conceito é um dos tantos conceitos que Malaguzzi criou e que marcam o trabalho pedagógica desenvolvido nas escolas municipais de Reggio Emilia.
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A documentação pedagógica é uma estratégia pedagógica que permite ao professor acompanhar os processos de aprendizagem das crianças, refletir sobre o seu fazer enquanto professor e narrar sobre o cotidiano e sobre a criança. Também a criança pode ver o próprio processo de aprendizagem ao revisitar seus desenhos, pinturas, esculturas e demais investigações realizadas na escola.
Essa perspectiva de documentação pedagógica, vai muito mais além de uma simples compilação de registros, destaca Fochi. É uma estratégia que ajuda o professor a construir um conhecimento pedagógico e a narrar sobre as aprendizagens das crianças. É por isso que o conceito da pluralidade de linguagens, as cem que sempre falou Malaguzzi, está diretamente vinculado ao conceito de documentação pedagógica, pois trata-se de uma oportunidade de declarar a ideia de criança que temos em suas diversas formas de ser e estar no mundo.
O ateliê da escola
Paulo Fochi usa como exemplo a escola Ateliê Carambola, citada no início desta reportagem. Para ele, a instituição compreende bem um dos principais valores e conceitos da experiência de Reggio Emilia: a ideia de que as crianças são feita de cem linguagens, como defendia Malaguzzi.
As crianças são convidadas a investigar sobre diversos temas, como os sentimentos, a construção de um parque para os pássaros, o universo, o pátio da escola. Para isso, são criados situações de aprendizagem em que as diversas materialidades são vistas como linguagens para as crianças se expressarem e elaborarem suas teorias. A argila, o desenho, a pintura, a linguagem digital, tudo isso vira um canal de elaboração e construção de conhecimento.
Daí que a cultura do ateliê ganha um espaço importante.
“Em Reggio Emilia, a experiência que inicialmente envolvia o espaço físico do ateliê evoluiu para uma ideia de cultura do ateliê, ou seja, a perspectiva de investigar, experienciar, construir, criar, por em negociação as materialidades como forma de elaboração do conhecimento virou um modo de trabalhar que ultrapassa apenas o espaço físico do ateliê para um modo de desenvolver o trabalho pedagógico. É aí que a figura do atelierista entra em diálogo com a do professor e a do pedagogista“, explica Fochi.
Saiba mais (livro): O papel do ateliê na educação infantil: a inspiração de Reggio Emilia
Para entender o papel do atelierista, é preciso compreender que o trabalho desenvolvido nas escolas de Reggio Emilia não se organiza por aulas ou por áreas do conhecimento. Ele está centrado na experiência da criança e, assim, professores, atelieristas, pedagogistas e até mesmo a equipe da cozinha se unem para criar as condições adequadas para que essa experiência de aprendizagem se torne difusa e complexa.
“O atelierista não é um professor de artes que passa 40 minutos em cada turma por semana, como muitas vezes acontece na realidade brasileira. Ele é um parceiro de trabalho tanto do professor como do pedagogista (ou o coordenador pedagógico, na nossa realidade); ele está com as crianças ao longo do desenvolvimento das investigações e também com os adultos para aprender a analisá-las”, explica Fochi.
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A essência da abordagem
Como em outros casos, a disseminação da abordagem acabou se criando uma perda da essência original de Reggio Emilia. A principal perda foi o caráter político da iniciativa.
Para Paulo Fochi, o principal desafio das escolas de educação infantil brasileiras, dispostas a aprender com o modelo italiano, é compreender os conceitos estruturantes.
“Se tornou vendável dizer que uma escola é inspirada em Reggio Emilia, Se temos algo a aprender com Loris Malaguzzi e a experiência de Reggio Emilia, é que precisamos levar tanto a educação quanto as crianças a sério.“
“Fazer isso“, continua o professor, “significa mergulhar fundo em estudos, aprender a observar as crianças e o cotidiano pedagógico. Temos que ser incansáveis em oferecer boas oportunidades educativas para que as crianças possam ser atendidas no seu direito em aprender.”
Fochi esteve nas comemorações do centenário de Malaguzzi em Reggio Emilia. Ao finalizar a conversa com Desafios da Educação, citou uma das frases que escutou na Itália – e que considera fundamental para caracterizar a experiência de Reggio. “Só podemos construir um mundo melhor a partir da garantia dos direitos das crianças.“
Saiba mais (livro): As Cem Linguagens da Criança – Volume 2: a Experiência de Reggio Emilia em Transformação
Maravilhosa reportagem!
Acredito muito nessa concepção pedagógica ( se é que podemos,assim, chamá-la)
“Criança é feita de cem linguagens…”
boa tarde! Tenho interesse em fazer uma pós graduação em educação infantil.
Sou de Bauru,coordenadora pedagógica.Tentando colocar na nossa escola um pouquinho |da TEORIA DE REGGIO EMILIA.Dificuldade em comprar livros para embasamento teorico
Sonia Kerche