Por Maria Carmen Silveira Barbosa e Zilma de Moraes Ramos de Oliveira
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) não se constitui em um currículo, mas é um referencial para sua construção e efetivação. Ela define aprendizagens essenciais a serem promovidas, de maneira adequada à realidade de cada sistema ou rede de ensino e a cada instituição escolar.
Neste artigo apresentaremos brevemente alguns pontos de nossa experiência, junto com a professora Silvia H. V. Cruz e o professor Paulo Fochi, sob a coordenação da professora Rita Coelho, ao longo da formulação de uma proposta de Base Nacional Comum Curricular para a educação básica (BNCC — 1ª e 2ª versões), em relação à etapa da educação infantil, posteriormente enviada para deliberação ao Conselho Nacional de Educação (CNE).
Todo o processo foi acompanhado por uma longa série de debates, oposições e demandas, tendo sido agravado pela mudança de governo na esfera federal, com novas equipes conduzindo a etapa final do processo. No momento de sua implementação pelas redes de ensino, alguns informes são valiosos.
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Por que reivindicamos nossa presença na elaboração da BNCC?
A certeza da necessidade de participarmos na elaboração da BNCC como representantes da Coordenação Geral de Educação Infantil (Coedi), órgão da Secretaria de Educação Básica (SEB) do Ministério da Educação (MEC), decorreu da manutenção de um compromisso histórico que temos assumido com a infância e a educação infantil.
A primeira dimensão desse compromisso é a lealdade com a Constituição Cidadã, que instituiu a educação infantil no sistema educacional brasileiro e afirma a contribuição da educação e da escola para a justiça social, a igualdade na oferta de oportunidades para todos e a garantia do direito que todos têm de aprender na escola.
A segunda é defender, na disputa política dos significados dos discursos sociais, os princípios que temos elaborado para a educação infantil nos últimos 30 anos, defendidos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEIs) de 2009 e seus preceitos filosóficos, políticos, sociológicos, antropológicos e, especialmente, didático-pedagógicos.
A terceira é a constatação de que estudos sobre as propostas pedagógicas de escolas e/ou orientações curriculares municipais feitos desde 2009 apontaram que, nos documentos curriculares das escolas e redes municipais, as concepções de criança, currículo, etc., trazidas pelas DCNEIs estavam sendo incorporadas; no entanto, no momento de operacionalização, do “como” constituir uma proposta de educação infantil, tais concepções divergiam das ideias formuladas nas DCNEIs, e a estrutura por áreas de conhecimento ou disciplinas, velha tradição pedagógica, era a única interpretação curricular feita daquele texto legal.
Uma base estruturada a partir de direitos da criança e campos de experiência
Quando iniciamos a escrita da BNCC-EI, em 2015, tínhamos clareza de que a tarefa incluía definir direitos básicos de aprendizagem e uma estrutura de organização curricular que orientasse as práticas educativas de modo mais adequado à maneira de a criança pequena significar o mundo.
Com base na concepção de criança como sujeito de direitos expressa pelas DCNEIs, propusemos seis direitos de aprendizagem das crianças na BNCC-EI: conviver, brincar, participar, explorar, expressar-se e conhecer-se.
Tais direitos implicam maior centralidade nas interações e brincadeiras e encaminham para uma construção pedagógica que coloca nas ações das crianças a sua capacidade de aprender. Cabe aos professores mediar a relação das crianças com as demais crianças e com o mundo à sua volta, ofertando tempo e espaço para que elas convivam, brinquem, participem, explorem, se expressem e se conheçam.
A natureza desses direitos e as especificidades dos ritmos e interesses das crianças de 0 a 6 anos e seus saberes e conhecimentos criaram condições para uma importante definição de estrutura curricular: a que se faz por campos de experiência.
Essa estrutura já estava prevista nas DCNEIs como uma possibilidade para essa etapa da educação básica. Ela tem caráter transdisciplinar e prevê a interação dos campos que reúnem as propostas dos professores e as experiências das crianças ao delas participar. Os campos de experiência são: o eu, o outro e o nós; corpo, gestos e movimentos; traços, sons, cores e formas; escuta, fala, pensamento e imaginação; espaços, tempos, quantidades, relações e transformações.
A importância dos campos de experiência é afastar do centro curricular um modelo que priorizava a transmissão de conhecimentos por disciplinas acadêmicas ou áreas de conhecimento e que, na educação infantil, não estabelecia relações entre o currículo e a vida cotidiana das crianças e as práticas sociais de suas comunidades, como se alimentar, brincar, descansar, vestir-se e ir ao banheiro, que são conhecimentos importantíssimos, formativos.
Também as diversas linguagens simbólicas não tinham espaço naquele modelo curricular, assim como os saberes oriundos da comunidade, da cultura popular. Ao situar o currículo na experiência das crianças, que acontece de modo integrado em diferentes campos da cultura, modifica-se a compreensão do que é conteúdo, do que é currículo, em um movimento que poderá ser um grande passo para a educação infantil no Brasil.
A relação é o educar
Tradicionalmente têm sido construídas propostas de como “ensinar” as crianças, com foco nas ações docentes. Já a ideia de objetivos de aprendizagem foca as experiências das crianças e seus contextos, o que requer um olhar mais observador, uma escuta sensível pelo professor, que continua a ser figura importante no processo.
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Quando nos centramos no direito de aprender de cada criança, não podemos esquecer que a educação como processo social é sempre relacional, coletiva, estando o grupo de pares presente não apenas nas aprendizagens informais, mas também nas aprendizagens que se dão pelas interações das crianças entre si e com os saberes da cultura, mediadas pelo professor.
Ao aprender música, por exemplo, um mundo se abre para a criança, um mundo de culturas musicais diferentes, sonoridades familiares e estranhas, que lhe possibilita compreender o mundo de forma mais ampla e os modos como ela pode produzir sons e apreciar a sonoridade.
Assim, em oposição a uma perspectiva de preparar a criança, desde cedo, para o futuro, para a escola, para o trabalho, a produção, “passando-lhe” conteúdos disciplinares e avaliando respostas padronizadas, a educação infantil se constitui como espaço de vida e formação humana.
Nela, os conhecimentos sistematizados pela sociedade, como a música, a química e a literatura, são recursos para conhecer o mundo e construir seu gosto, preferência, modo de vida. Eles precisam ser reelaborados pessoal e socialmente, assim como os temas ligados ao autocuidado e ao cuidado com o bem comum, como a saúde, a sustentabilidade do planeta e a ruptura com os preconceitos.
A preparação para a alfabetização
No entendimento da estrutura curricular por campos de experiência, chamamos a atenção para o fato de que são muitas as linguagens que uma criança pequena tem o direito de conhecer, aprender e usufruir na sociedade atual. As linguagens simbólicas relacionam-se e potencializam-se.
Cantar leva a falar, a dançar, a desenhar, a abraçar, a fazer de conta… Esse posicionamento nos remete a repensar a presença da linguagem escrita na educação infantil.
A oralidade é a manifestação principal da criança, que precisa aprender a narrar, a conversar, a combinar, a descrever, a argumentar, a qualificar. Aprender a leitura na educação infantil está vinculado à escuta e ao convívio, com a contação e leitura de histórias e o conhecimento de outros portadores de escrita, ou ainda a participação em práticas sociais de leitura e escrita que ofereçam sentido ao dia a dia.
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Essas são aprendizagens muito relevantes em nosso mundo letrado. Contudo, a alfabetização não é nem a única, nem a mais importante aprendizagem para as crianças de menos de 6 anos. Aprender a desejar ler e escrever é alimentado pelo desenho, pela pintura, pelas construções, pela narrativa oral e audiovisual, pelo teatro, pela corporeidade e pela brincadeira, especialmente do jogo de papéis.
Essa concepção, presente desde a versão 2 da BNCC-EI, que liga a linguagem oral e escrita a processos de pensamento e imaginação, está assegurada na versão 4 (a versão final) e diverge das proposições presentes na versão 3, que acentuava uma aprendizagem mais ligada à alfabetização propriamente dita, em um campo que tinha um olhar mais disciplinar.
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Formação de professores
O curso de pedagogia, além de dever estar comprometido com todos os processos educativos de uma sociedade, ao assumir a formação inicial dos docentes da educação infantil precisa ter um maior compromisso com a reinvenção da escola infantil (creche e pré-escola), tanto em seus aspectos teóricos quanto em relação às metodologias e tecnologias educativas, à didática, etc.
Há muita inovação técnica, vinda fundamentalmente das tecnologias da informação e da comunicação (TICs), que é recebida como um avanço pelos futuros professores, mas costuma haver nos cursos de magistério pouca discussão e elaboração teórica sobre o dia a dia da educação infantil, sobre as crianças e suas aprendizagens, sobre os saberes pedagógicos e as tecnologias que sustentam o cotidiano da educação infantil.
A formação continuada é fundamental para possibilitar aos professores aprimorarem suas respostas às diferentes situações que enfrentam, para aprofundar a reflexão sobre os novos desafios que a sociedade em rápida mudança lhes oferece, para reconstruir seu projeto educativo em função das demandas da escola, das novas configurações familiares, das próprias crianças e suas culturas infantis.
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Dado o papel chave que a formação continuada tem na efetivação dos direitos de aprendizagem das crianças, é dever do Estado oferecer condições de tempo, espaço, recursos econômicos e humanos para que os interlocutores — professores, familiares, jovens e crianças — possam se manifestar, criar processos e instituir novos currículos escolares.
No momento em que queremos visibilizar as crianças e suas diferenças, pensamos que há princípios pedagógicos comuns, mas aspectos didático-metodológicos diferentes, de acordo com os percursos vividos pelas crianças, e a apresentação dos objetivos em cada campo de experiência por subdivisões etárias pode potencializar a qualificação das propostas educacionais.
E a implementação
A elaboração de uma BNCC pode trazer importante espaço para a discussão sobre os propósitos da escola e da educação brasileira, desde que tal discussão seja mediada por olhares e práticas que assegurem aprendizagens essenciais a todos, fortalecendo a luta por combater desigualdades e privilégios.
Para alguns educadores, falta aprofundar o que seria a parte diversificada da BNCC-EI, dando maior ênfase às questões locais, aquelas relativas às crianças pequenas e seus contextos. Para outros, a própria concepção proposta já tem a diversificação como regra geral.
Garantir à criança, desde cedo, o direito à diferença, à alteridade e à apropriação de significativas aprendizagens a partir das diferenças requer um equilíbrio dinâmico, onde haja lugar para o direito comum — algo que é de todos, mesmo que não agrade a alguns, mas confere vínculo e estabilidade a todos e o direito à diferença.
A BNCC não se constitui em um currículo, mas é um referencial para sua construção e efetivação. Ela define aprendizagens essenciais a serem promovidas, deixando o diálogo com autores, perspectivas teóricas e metodológicas a cargo dos currículos e dos projetos pedagógicos, que devem ser adequados à realidade de cada sistema ou rede de ensino e a cada instituição escolar, considerando o contexto e as características de suas crianças.
O direito de todas as crianças é aprender a brincar e a interagir; como isso se efetiva é escolha pedagógica da escola, proposta didática da professora ou professor.
Leia mais: Uma análise do conceito de competências na BNCC
Artigo originalmente publicado na Revista Pátio Educação Infantil nº 55, abril-junho 2018.
Sobre o autor
Maria Carmen Silveira Barbosa é professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: licabarbosa@ufrgs.br.
Zilma de Moraes Ramos de Oliveira é livre-docente em Psicologia do Desenvolvimento na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). E-mail: zilmaoliveira@uol.com.br.
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