Quase todo mundo faz – ou já quis fazer – alguma coisa pelo despretensioso prazer de criar. Nos últimos anos, o movimento “faça você mesmo” (do it yourself ou apenas DIY, na silga em inglês) encorajou pessoas a restaurar móveis e cultivar temperos ao redor do mundo. A educação também entrou nessa onda. Através da cultura maker, o DIY está causando mudanças no jeito de aprender e ensinar.
A cultura maker combina autonomia, tecnologia e liberdade de criação para estabelecer um ambiente de experimentação propício à aprendizagem. “Na prática, um indivíduo maker muda a realidade através de uma contribuição autoral. Ou seja, ele usa sua capacidade de criação para transformar aquilo que era uma ideia em algo palpável”, explica Luciano Meira, professor de psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Para explorar o tema, o Desafios da Educação conversou com o professor – que é mestre em Psicologia Cognitiva pela federal pernambucana, doutor em Educação Matemática pela Universidade da Califórnia e cofundador da Joy Street, uma empresa que atua no desenvolvimento de tecnologias educacionais lúdicas e pesquisador em temas como aprendizagem e cultura digital. Confira:
Como podemos definir a cultura maker?
A cultura maker cria soluções e produtos que foram trazidos para a realidade física por meio da imaginação. Na prática, um indivíduo maker muda a realidade através de uma contribuição autoral. Ou seja, ele usa sua capacidade de criação para transformar uma ideia em algo realmente palpável.
A tecnologia aprimorou esses processos de criação?
Totalmente. A cultura maker da atualidade está associada ao digital e à computação. Os algoritmos criados apoiam o autor para modificar a realidade através de uma instrumentação que, por ser digital, abre um campo de possibilidades sem precedentes.
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Como a cultura maker pode ser utilizada na educação?
A imaginação surge como elemento fundamental, é o primeiro de uma série de componentes que são revolucionários. É um recurso capaz de produzir mundos fantásticos e significativos que respondem aos desejos mais íntimos. E, veja só, são esses desejos e imagens que tentamos criar e trazer para o mundo corpóreo o tempo todo. A cultura maker só torna isso um pouco mais possível.
Como as IES podem incorporar a cultura maker no seu dia a dia?
A escola é historicamente pautada pela construção abstrata de ideias e por um caráter enciclopédico. Já a cultura maker traz a possibilidade de professores e alunos se envolverem em um projeto mais físico, não somente no nível mental. Atuando sobre o mundo também físico – e trazendo a dimensão do significado –, os alunos entram em contato com seu objeto e podem aprender muito mais com ele do que quando apenas discutem e o imaginam.
Você considera essa maneira de aprender mais efetiva?
Sem dúvida. Para criar algo, eu preciso acessar o mundo das ideias e descobrir como colocar minha imaginação em prática. Eu crio uma ponte, uma articulação entre o que entendo e o que sou capaz de fazer. E assim resolvemos o divórcio entre teoria e prática, entre imaginação e realidade.
Existe um entendimento de que as áreas de engenharia e física conseguem cumprir o “faça você mesmo” de maneira mais efetiva do que a história e a geografia, por exemplo. Você concorda?
Pelo contrário. O conceito de jardim de infância foi criado no século 19 com o propósito de criar um ambiente que pudesse dar materialidade ao que as crianças sentiam e pensavam. Seguindo essa lógica, qualquer sala de aula pode ser um espaço maker. Elas podem não ter laboratórios tradicionais, com impressoras 3D e máquinas de laser, mas são projetadas para produção material da imaginação – e é exatamente isso o que define um bom ensino.
Considerando o potencial da cultura maker na educação, como você imagina a universidade no futuro?
As mudanças no setor do ensino costumam acontecer mais lentamente – e é assim mesmo que deve ser, na minha opinião. Temos que considerar investimento, a opinião dos stakeholders e o próprio desenvolvimento do jovem ou da criança. Por isso, eu não sou favorável à disrupção no sistema educacional. Acho que tudo deve coexistir e as transformações vão ocorrer naturalmente. Nesse ritmo, acredito que em 50 anos teremos uma nova escola.
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Qual é o papel do professor nesse novo cenário?
Há algum tempo defendo que a educação não deve ser centrada no aluno, mas na construção de relações afetivas e intelectuais entre ele e o professor. Essa relação orienta a aprendizagem e cria uma via de produção de sentido mais transparente. Assim, formamos alunos capazes de operar sobre o mundo e com competências pragmáticas. Tudo isso, é importante destacar, deve estar no contexto da democratização do ambiente de aprendizagem. Todas as formas de expressão pessoal devem ser acolhidas pelo sistema de educação. Eu luto não só pelo acesso, mas pelo direito a existir nos diversos formatos, sejam eles quais forem.
Qual é o investimento necessário para a IES que deseja se especializar na cultura maker?
A instituição precisa de design de novas engenharias didáticas, mas isso não necessariamente envolve dinheiro e laboratórios. Aqui na [Universidade] Federal de Pernambuco reunimos alunos de psicologia, ciência da computação, design e engenharia de software para cursarem juntos uma disciplina.
O que eles fazem?
É uma disciplina de desenvolvimento de projeto. Eles formam times multidisciplinares para investigar problemas na sociedade. Depois, todos pensam em como desenvolver, por exemplo, aplicativos ou produtos com base em internet das coisas (IOT, na sigla em inglês). Isso é a definição pura de cultura maker: quando se oferece a oportunidade de investigar problemas relevantes e dar solução com um aspecto tecnológico e material.
Sendo assim, a cultura maker parece ser mais efetiva quando é feita em grupo. É isso mesmo?
Ninguém resolve um problema sozinho. É assim que atuamos na sociedade. E é assim que queremos agir na universidade.
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