“Hoje, praticamente tudo que alguém ensina, ou aprende, já está disponível no YouTube”. É com essa provocação que o educador norte-americano Jonathan Bergmann defende o conceito de sala de aula invertida – ou flipped classroom. A metodologia prega que o professor induza ao aprendizado ativo, preparando o estudante para um mundo cada vez mais complexo e incerto.
A ideia passa pelo estabelecimento de relações mais próximas e sem barreiras entre docentes e discentes. Assim, ambos saem de suas respectivas zonas de conforto: o professor, quando deixa de lado o papel de mero emissor de informações; e o aluno, quando deixa de ser um simples receptor passivo.
Jon Bergmann, como é mais conhecido, é autor de sete livros sobre sala de aula invertida. Entre eles, Aprendizagem Invertida, lançado em junho e integrante da série Desafios da Educação. Em entrevista exclusiva ao portal, ele fala dos benefícios relacionados à transformação da educação e dá dicas de como colocar o conceito de sala de aula invertida em prática.
Confira a entrevista completa:
A implementação do conceito de flipped classroom foi introduzida pelo senhor em parceria com o professor Aaron Sams em 2007 em uma escola do Colorado. Em que momento vocês perceberam que era necessário fazer essa mudança?
Na escola onde lecionávamos, muitos estudantes vinham faltando às aulas. Isso acontecia porque era uma escola rural e muitos deles tinham de ir embora na hora do almoço, mesmo que o turno durasse mais duas ou três horas. Isso também acontecia porque alguns precisavam pegar um ônibus até outra escola para participar de competições – o que acontece com frequência nos Estados Unidos. Então começamos a gravar nossas aulas matutinas para as aulas do turno da tarde. A diretora nos parabenizou pela iniciativa, ficamos felizes, e logo depois ela nos disse algo que nos fez refletir: a filha dela frequentava uma universidade em que os professores gravavam as aulas. ‘A minha filha adora, porque não tem mais que ir para a aula’. Naquele mesmo dia, Aaron e eu começamos a pensar em qual seria o valor do tempo em sala de aula se você não tem mais que ir para a aula. Foi quando fizemos a pergunta: ‘e se gravássemos pra valer?’. Esse foi o momento que mudou tudo.
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A sala de aula invertida preconiza uma nova forma de comportamento por parte de estudantes e professores. Inclusive, o senhor chegou a dizer que o modelo é a estratégia central que apoia todos os outros métodos de aprendizagem ativa. Por quê?
A sala de aula invertida está mudando a maneira como pensamos a educação. Digo que ela é uma meta-estratégia que apoia todas as outras, porque dá aos professores algo que pode parecer difícil de dimensionar: tempo. Tempo para fazer métodos de aprendizado mais ativos, como os baseados em projetos, em pesquisa ou competências. Se um professor gasta muito tempo lecionando, não sobra tempo para fazer essas outras coisas. Assim, a sala de aula invertida permite que os professores usem outras estratégias.
Em sua opinião, qual é a maior inovação oferecida pela sala de aula invertida quando comparada ao métodos mais tradicionais?
Acredito que não seja tanto uma inovação quanto uma reordenação do tempo. É colocar o artifício certo, que é o tempo dos professores, em lugares de maior necessidade. A informação é barata e fácil, certo? Eu posso obter informações diretamente do meu celular. Assim, qual seria o melhor uso do tempo em sala de aula? Fazendo tarefas mais complexas, auxiliando os alunos com o que eles têm mais dificuldade, ajudando-os a analisar, a aplicar e a avaliar conceitos cada vez mais complexos. Essa é a grande inovação.
Quais as evidências de que essa metodologia melhora o aprendizado e o desempenho dos alunos?
Há evidências incontestáveis de que a sala de aula invertida funciona. Existem mais de 500 pesquisas em revistas acadêmicas que mostram que, de fato, o método é eficaz. Nem todos disseram que ele é o melhor, mas a maioria deles sim. Pude viajar ao redor do mundo e ver que esse trabalho tem dado certo. Por exemplo, estou agora em um quarto de hotel na Pensilvânia, onde estão colocando a sala de aula invertida em prática e vendo que realmente funciona.
Como convencer os alunos de que essa metodologia pode beneficiá-los?
Os alunos não são tão difíceis de convencer. Afinal, eles são os millenials, nativos digitais que entendem que a informação é de fácil acesso. Alguns alunos talvez prefiram um modelo de aprendizado passivo. No entanto, se o maior interesse dos estudantes está em se tornarem pessoas mais instruídas e se a sala de aula invertida é a melhor maneira para isso, eles vão comprar a ideia. Por exemplo, acabei de voltar de Misiones, na Argentina, do outro lado da fronteira com o Brasil. Por lá, há 1,5 mil professores aprendendo sobre a sala de aula invertida. E os alunos argentinos com quem tive a oportunidade de conversar também estão muito empolgados.
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Muitos alunos não têm hábitos frequentes de estudar e acabam não realizando atividades em casa. Como é possível envolvê-los e engajá-los nas tarefas que antecedem a aula?
A melhor maneira de envolver um aluno é deixá-lo saber que o professor se importa com ele. Um bom ensino sempre foi sobre relacionamentos e conexões. Descobrimos que, na sala de aula invertida, os professores conseguem construir um melhor relacionamento e, assim, atingir mais alunos, em mais as aulas, cada vez mais. Claro que ainda há outros métodos. Sempre tem aquele estudante que não fica super animado com o que o professor ensina – e há muitas razões para isso. Acredito que seja importante manter o aluno responsável pelo seu aprendizado, fazendo tarefas pré-aulas. O que eu fiz, e que muitos professores também fazem, é que se o aluno não faz as tarefas em casa, ele faz durante a aula, enquanto os outros estão trabalhando em atividades mais complexas. No fim, os próprios alunos chegaram à conclusão de que seria mais fácil se eles fizessem as atividades prévias. Assim, eles conseguem receber a ajuda do professor na tarefa. Isso têm resolvido a maioria dos problemas. Ainda vai existir aqueles que não vão fazer as atividades em casa, mas honestamente eles são os mesmos alunos que não iam muito bem nas aulas de qualquer maneira.
Em comunidades mais populares, de baixa renda, alguns alunos não têm acesso à internet em casa. Como lidar com esse tipo de situação?
Não ter internet em casa é o menor dos problemas. Isso porque os estudantes têm cada vez mais acesso a mobiles e a outros dispositivos. Como já mencionei, eu estava em Misiones, na Argentina, e pude conversar com um diretor de uma escola local. Ele me contou que grande parte dos alunos vem de famílias pobres e da zona rural, mas a maioria deles tem acesso a smartphone. No entanto, esses dispositivos não têm grandes dados de acesso à internet. Assim, os professores criam arquivos em áudio e em PDF. Assim, os alunos fazem download do arquivo via bluetooth e escutam as aulas. Mas a sala de aula invertida não depende somente da tecnologia. Claro, ela acelera o ritmo do processo. Nesse sentido, quanto melhor for a infraestrutura da escola, melhor será o acesso dos alunos.
Outro desafio diz respeito aos próprios professores. Muitos ainda resistem a novos métodos de ensino. Por quê? E é possível engajá-los para que adotem o modelo de sala de aula invertida?
Os professores são algumas das pessoas mais incríveis do mundo. Eles trabalham para o melhor dos seus alunos. No entanto, eles aprenderam e se formaram em um sistema que é difícil de mudar. Foi difícil para mim mudar. Eu gostava de ser o centro das atenções em sala de aula e eu tive que abrir mão disso – e foi a melhor coisa que eu fiz. Acredito que convencer os professores é um dos grandes desafios da sala de aula invertida. Já comentei duas vezes, mas eu fiquei abrilhantado por ver os professores de Missiones tão animados com as mudanças. É preciso alguém para compartilhar uma maneira melhor para que eles possam mudar. Claro, ainda vai continuar sendo difícil. No geral, as pessoas têm dificuldade em mudar.
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E no ensino superior, como a sala de aula invertida pode contribuir com a formação dos futuros profissionais?
Temos trabalhado com IES já faz algum tempo, mas só agora vemos as mudanças. É visível que elas estão demorando mais a fazer a mudança. No entanto, a boa notícia é que há uma enorme onda de interesse das universidades em aprender e aplicar novos métodos. Estou impressionado e animado em ver que essa mudança está acontecendo no ensino superior, também. É preciso criar maior ênfase em ensino, e não apenas em pesquisa.
Se uma instituição decide implantar a sala de aula invertida em seus cursos, qual seria o primeiro passo?
A principal dica que eu daria é procurar um bom treinamento. Há muitas maneiras de se aprender a sala de aula invertida de maneira errada. Mas o Flipped Learning Global Initiative tem um dos melhores materiais de treinamento e está disponível tem em três idiomas: inglês, espanhol e chinês. É um ótimo primeiro passo para qualquer escola ou instituição. Procuro incentivar todos os professores a terem um certificado de treinamento.
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Por fim, como é possível avaliar o desenvolvimento e a popularização do conceito de sala de aula invertida?
A sala de aula invertida está funcionando, porque traz coisas novas ou amplia as antigas. O primeiro motivo é porque o método oferece aprendizado ativo. Com ele, é possível ampliar relacionamentos. Acredito que esse seja o segredo: a conexão que o aluno tem com o professor e a conexão entre o professor com o aluno. Como educador, se eu ainda fizer o modelo tradicional, posso continuar me escondendo atrás da minha própria palestra e do conteúdo que estou ensinando. Mas nesse modelo invertido o professor precisa estar entre os alunos. Por isso, a sala de aula invertida apenas planta o solo para relacionamentos e conexões. Não é mais apenas sobre o intelecto e sobre a grade curricular, mas também sobre a vida como um todo – e essa é a chave.
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