Por Lino de Macedo e Maria Inês Fini*
Base Nacional Comum Curricular (BNCC) orienta, doravante, os currículos escolares relativos à educação básica no Brasil. Nela, o conceito de competências tem posição essencial. O objetivo deste artigo é analisar tal conceito na perspectiva da visão interacionista de Piaget como a entendemos.
Segundo Piaget e colaboradores (1980), conceitos envolvem julgamentos. Julgamentos são tomadas de decisão, formas de apreciação, afirmações ou negações pelas quais assumimos, podendo estar certos ou errados, que algo é o que dizemos ou supomos ser, ou que teórica ou praticamente consideramos que é. Essa proposição de conceito expressa a visão interacionista de Piaget (1977), ou seja, sua perspectiva de que o conhecimento é construído na relação sujeito-objeto.
Passaremos agora a comentar o conceito de competências assumido pela BNCC: mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.
Notemos que todas as palavras expressas na definição, mesmo os conectivos e sinais que as vinculam (e, de, do, para, vírgulas) como frase, implicam conceitos, com suas predicações, inferências e julgamentos difíceis de serem assimilados em uma primeira leitura, isto é, por uma leitura não discutida ou compartilhada. Por isso, para analisar a definição proposta, destacaremos suas principais palavras.
Mobilização
Consideremos significações do verbo mobilizar, em vez de sua versão substantiva – mobilização – a, que indica “ato ou efeito de mobilizar”. Segundo o dicionário Priberam da Língua Portuguesa, mobilizar é o mesmo que “pôr (-se) em movimento”, isto é, mover, movimentar. Igualmente, mobilizar é “pôr (-se) em ação ou em uso”, o que, na prática, indica ativar, envolver, por oposição a “desmobilizar”. Mobilizar é também “incitar (-se) à participação”, ou seja, motivar ou impulsionar. Observemos que, nas três significações, mobilizar refere-se a comportamentos ou ações que põem algo em movimento. Em outras palavras, ser competente é pôr ou se pôr em ação em seus diferentes sentidos.
Um professor que medeia pode ser diferente de um professor que mobiliza. Ele pode mobilizar de muitas formas: propor exercícios ou tarefas a serem realizados, configurar rodas de conversa sobre determinado tema, fazer reflexões ou propor projetos. O aluno, igualmente, pode ser mobilizado de muitas formas: pelas ações ou motivações de seu professor, pelo intercâmbio com seus pares, por suas motivações em fazer pesquisas, discutir um ponto de vista, assumir certa atitude ou abraçar dado valor.
Quem mobiliza organiza uma situação, aceita um desafio, compromete-se com alguma coisa. A mobilização sempre acontece com um sujeito, mesmo que seja estimulada por outro. Se vida é movimento, viver é mobilizar-se para lhe dar sentido, para conhecer e conviver com seus desafios. Daí competência ser, para a BNCC, o mesmo que conhecimento mobilizado, operado e aplicado em situação, sendo conhecimento compreendido de forma ampla, ou seja, envolvendo conceitos, procedimentos, valores e atitudes.
Conhecimentos como conceitos
Os conhecimentos escolares se expressam ou se organizam como conceitos ou redes conceituais que compõem teorias, formas de explicação, conjuntos de princípios. Tais conceitos se expressam como palavras, que conjugam frases, as quais compõem parágrafos que estruturam um texto. Conhecer, no sentido de conceituar, supõe o domínio de um conteúdo em forma de discurso escrito, oral ou simbólico.
Trata-se de uma competência muito importante, pois supõe mobilizar ações ou linguagens que se expressam pela leitura e escrita, pelas explicações científicas, por modos de resolução de problemas ou argumentações compartilháveis socialmente e nos tornam parte do mundo e dos outros. É uma competência a ser desenvolvida desde o começo da vida e que só pouco a pouco vai se constituindo como forma de mobilização.
Conhecimentos como procedimentos
Conhecer, como procedimento, significa aprender habilidades, ou seja, modos de agir em um sistema. Aprender habilidades supõe aprender a predicar, julgar e fazer inferências, mas em um contexto prático, objetivo, espaço-temporal. Tais conhecimentos compõem o que Piaget chama de esquemas procedimentais, ou seja, formas de realizar com êxito, que expressam níveis de compreensão em ação.
Habilidades práticas, cognitivas, sociais e emocionais
Essas habilidades, em verdade, são formas agregadas de conhecimentos como conceitos e procedimentos. A seguir indicamos as que são propostas na introdução à BNCC.
- Habilidades práticas: aplicar conhecimentos para resolver problemas; ser proativo para identificar os dados de uma situação e buscar soluções; utilizar tecnologias digitais de comunicação e informação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas do cotidiano (incluindo as escolares) ao se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos e resolver problemas.
- Habilidades cognitivas: ter autonomia para tomar decisões; aprender a aprender; exercitar a curiosidade intelectual; recorrer à abordagem própria das ciências (investigação, reflexão, análise crítica, imaginação, criatividade); aprender a investigar causas, elaborar e testar hipóteses; aprender a formular e resolver problemas; exercitar a invenção de soluções.
- Habilidades sociais: saber conviver com pessoas e instituições em um contexto de regras, de limites espaçotemporais, praticando o respeito mútuo e a colaboração; exercitar a empatia; exercitar o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação; respeitar-se e promover o respeito ao outro; acolher e valorizar a diversidade de indivíduos e de grupos sociais; reconhecer-se como parte de uma coletividade com a qual deve se comprometer; atuar com discernimento e responsabilidade nos contextos das culturas digitais; valorizar e utilizar conhecimentos historicamente construídos; colaborar para a construção de uma sociedade solidária.
- Habilidades emocionais: saber reconhecer emoções como a raiva, a alegria, a inveja, a gratidão, a tristeza e o medo; saber gerir sua expressão desenvolvendo formas socialmente aceitáveis de comunicá-las; desenvolver o senso estético; conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional; reconhecer suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas e com a pressão do grupo.
Atitudes
Segundo o dicionário da American Psychological Association, atitude, em psicologia social, refere-se a “uma avaliação relativamente persistente e geral de um objeto, pessoa, grupo, assunto ou conceito, em uma escala que varia de negativo a positivo” (American Psychological Association, 2010, p. 109).
Selecionamos as seguintes frases da introdução da BNCC como relativas a atitudes: “Competências e diretrizes são comuns, os currículos são diversos”; “Os conteúdos curriculares estão a serviço do desenvolvimento de competências”; “As competências estão comprometidas com aprendizagens essenciais, e não com conteúdos mínimos a ser ensinados”. O conhecimento escolar não será realizado como algo desinteressado e erudito, ou seja, como fim em si mesmo. A educação está comprometida com a formação e o desenvolvimento humano global, em suas dimensões intelectual, física, afetiva, social, ética, moral e simbólica.
Valores
Segundo o dicionário da American Psychological Assoiciation, valor refere-se a um “princípio moral, social ou estético aceito por um indivíduo ou sociedade como um guia para o que é bom, desejável ou importante” (American Psychological Association, 2010, p. 1008).
A seguir destacamos algumas ideias da BNCC que expressam seu compromisso com valores: prover uma formação humana integral; favorecer a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva; buscar a equidade na educação construindo currículos diferenciados e adequados a cada sistema, rede e instituição escolar, ou seja, estar aberto à pluralidade e à diversidade; prover uma experiência escolar acessível, eficaz e agradável para todos; assumir que todos podem aprender.
Resolver demandas complexas da vida cotidiana
O objetivo da educação é a integração da criança e do jovem no mundo adulto. Essa integração, bem-sucedida e no ótimo das possibilidades de cada um, é essencial. Nós, os velhos e aposentados, as crianças e os jovens, os doentes e portadores de condições incapacitantes para o autocuidado, dependemos dos adultos. Eles são, portanto, a nossa referência. O que os adultos fazem para consigo mesmo (como gerenciam sua vida pessoal em todos os aspectos), como trabalham, participam da vida coletiva e das coisas do mundo têm muita influência sobre todos nós. O problema é que hoje, mais do que nunca, as demandas da vida cotidiana são complexas. Por isso, é fundamental o modo como eles as compreendem e as resolvem.
Pleno exercício da cidadania
Este predicado da noção de competência na BNCC é, igualmente, fundamental e se relaciona diretamente com o anterior, pois integração implica, nos limites e no ótimo das possibilidades de cada um, em todas as fases da vida, o direito do pleno exercício da cidadania: buscar a superação da fragmentação das políticas educacionais; fortalecer o regime de colaboração entre as três esferas de governo; garantir o direito dos alunos a aprender e a se desenvolver, contribuindo para o desenvolvimento pleno da cidadania. A educação é direito de todos e dever do Estado e da família; visa ao pleno desenvolvimento da pessoa e ao seu preparo para o exercício da cidadania.
Mundo do trabalho
A BNCC mantém o compromisso de que a educação vise à qualificação da pessoa para o trabalho. Um trabalho que, devido ao conhecimento científico traduzido em tecnologias cada vez mais sofisticadas, que substituem as atividades humanas de forma mais barata, eficiente e segura, exige o desenvolvimento de competências em áreas e serviços cada vez mais diversificados e sofisticados.
Tememos que a desigualdade social, na revolução digital, ora em curso, se tornará maior ainda, a não ser que aprendamos na escola habilidades e desenvolvamos competências, como aprender a argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis; formular, negociar e defender ideais, pontos de vista e decisões comuns; posicionar-se eticamente em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta.
A BNCC e a avaliação
A homologação da BNCC pelo MEC torna-a também referência obrigatória ao necessário reexame das matrizes de avaliação da educação básica e dos exames conduzidos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Certamente estes deverão ter o tratamento conceitual e linguístico próprio a uma matriz de avaliação. No entanto, a indicação das competências e habilidades a serem avaliadas em diferentes modalidades de provas e questionários de contextos deverá estar fundamentada numa compreensão clara do conceito de competência e habilidade, tal como se expressam na BNCC, com os mesmos princípios, conhecimentos e valores que a constituem.
Assim, a avaliação de desempenho dos estudantes brasileiros na educação básica e a compreensão de seus resultados poderá apoiar o desenvolvimento dos currículos nacionais, contribuindo, de um lado, para a implementação da BNCC e, de outro, para o ajuste das políticas que visam à melhoria da qualidade da educação básica do Brasil.
*Escrito por Lino de Macedo e Maria Inês Fini, o artigo “Uma análise do conceito de competências na BNCC” está na edição nº 37 da Revista Pátio Ensino Médio, Profissional e Tecnológico. Para assinar a revista, CLIQUE AQUI.
Sobre os autores
Lino de Macedo é professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e assessor do Instituto de Pesquisa Pensi. E-mail: limacedo@me.com. Maria Inês Fini é presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). E-mail: maria.fini@inep.gov.br.
Referências
AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. Dicionário de psico- logia APA. Porto Alegre: Artmed, 2010.
PIAGET, J. O desenvolvimento do pensamento: equilibração das estruturas cognitivas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977.
PIAGET, J. et al. As formas elementares da dialética. São Pau- lo: Casa do Psicólogo, 1996/1980. Capítulo 1.
Saiba mais
MACEDO, L. Ensaios pedagógicos: como construir uma escola para todos? Porto Alegre: Artmed, 2005.
Confira a série Competências na Educação
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