Ensino Superior

Indígenas na universidade: relatos mostram que preconceito e exclusão ainda são realidade

0

Para os povos Guarani, “Arandu” é uma forma de conhecimento sensível: a capacidade de “sentir o tempo-espaço ao longo da experiência no clima-mundo”. A palavra revela como os processos de aprendizagem e a circulação de saberes é praticada entre os Guaranis, como uma espécie de oração. O conceito é complexo, mas pode ser entendido como “sabedoria”.

Como o “Arandu”, existem muitos conceitos que tratam sobre o conhecimento e a aprendizagem dentro da multiplicidade de culturas dos povos indígenas no Brasil. Essa diversidade é capaz de contribuir para o ambiente das instituições de ensino superior (IES) e para o saber construído dentro delas. Entretanto, a falta de validação dos povos tradicionais nas IES limita seu potencial transformador.

Foi o que Luma Cristinne Fernandes Monteiro, de 21 anos, sentiu na pele. Indígena do povo Baré, ela viveu a infância entre a comunidade ribeirinha e a cidade de São Gabriel da Cachoeira, no extremo noroeste do Amazonas, a 850 km da capital Manaus. Em 2019, ela ingressou na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) para cursar Engenharia de Produção.

“Entrei sendo a única indígena da turma. Minha primeira língua é o nheengatu e a minha segunda língua é o Português. Falar e escrever no que chamam de norma padrão é uma dificuldade, pelo menos no início”, conta.

Nessa reportagem, o Desafios da Educação traz relatos como o de Luma. Os depoimentos mostram como o preconceito e a exclusão ainda precisam ser encarados pelas populações indígenas no ambiente do ensino superior.

Dalton Yarabe Chun Fotografia

A identificação

Segundo Naine Terena, que é doutora em Educação, mestra em Artes e graduada em Radialismo, ainda existe muita discriminação dentro das IES. “Entrei na universidade em 1999. De lá pra cá, se passaram 23 anos. Era a única indígena na Comunicação e, na mesma universidade, acho que até hoje só se formaram três indígenas.”

As dificuldades, para Terena, sempre giraram em torno de sair do Mato Grosso, seu estado de origem, para viver em São Paulo e Brasília. “Situações negativas existem sempre, principalmente quando identificam nossa ‘cara de índia’. É como se algumas pessoas não quisessem que estivéssemos no mesmo lugar que elas”, explica.

O espanto ao identificar uma pessoa indígena em sala de aula foi um dos primeiros sustos de Luma. “No meu primeiro dia de aula, o professor fez aquela dinâmica de perguntar de onde cada um vinha. Como a maioria é do sudeste, aquilo não gerava espanto. Uma colega falou que era curitibana e tudo bem. Quando eu falei que vinha do Amazonas, foi uma surpresa geral. Dava para ver na expressão das pessoas. Por que é tão chocante ver uma pessoa do Amazonas na universidade? Perceber que era algo tão fora do comum ter alguém como eu naquele contexto me deixou perplexa”, conta.

Leia mais: 3 autores indígenas para trabalhar em sala de aula

Trabalho em grupo

Fazer trabalhos em grupo costuma ser um momento marcante para as pessoas indígenas no ensino superior. “Uma vez um pessoal me chamou para fazer parte, pois o trabalho era sobre meio ambiente. Fui percebendo o quanto o que eu falava não era legitimado. Eu fiquei muito chateada, pois tiraram toda a parte que eu havia colocado sobre a Amazônia. Logo depois, começaram a não me responder e foram se afastando”, narra Luma.

Em outra situação designaram a parte mais “fácil” do trabalho para a estudante indígena. “Nitidamente, pensaram que eu não era capaz de desenvolver aspectos mais complexos da tarefa”, pontua. “Nos enxergam de forma inferior, sendo que dentro da sala estamos lado a lado, estamos todos aprendendo. Na minha cultura, se alguém não sabe algo, a gente ensina. Como vivemos em coletivos, uma mão lava a outra. Todos esses acontecimentos foram muito chocantes para mim”, explica.

O relato de Naine é similar. “Já ouvi muitos estudantes indígenas, que, por exemplo, não conseguem integrar grupos de trabalho em seminários porque são excluídos. Ou de professores que não têm muita paciência com a dificuldade linguística que alguns trazem para dentro da universidade. Nesse período de pandemia, também houve a dificuldade de se acessar internet e ter equipamentos para acompanhar as aulas virtuais.”

A luta por moradia

A estrutura física das instituições de ensino é mais um ponto de tensão. Entre os costumes que diferenciam os modos de vida das comunidades indígenas está o sentido comunitário. Indígenas precisam de um espaço para exercer o convívio, contar histórias e fazer rituais. Algo impossível dentro da lógica compartimentada comum nas moradias estudantis.

“É preciso assegurar as questões de permanência dessa população. Em muitos casos, eles saem de suas comunidades ou do interior para a cidade onde a universidade se localiza, o que significa custos e a desestruturação de um modo de vida”, explica a doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora do programa de pós-graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Iara Tatiana Bonin. “Por isso, a importância de uma Casa do Estudante Indígena, onde eles possam receber os parentes, ter os filhos junto. Possam compartilhar do dia a dia”, diz.

Um caso que ilustra bem essa questão é a recente luta dos estudantes da UFRGS pela Casa do Estudante Indígena.  Após muita negociação e um período acampados em frente a um prédio abandonado no centro de Porto Alegre, os estudantes conquistaram um espaço para viver juntos, mas que ainda precisa de reparos.

Na carta de reivindicação, eles explicam o histórico de luta por moradia e ressaltam a necessidade de uma casa específica para a comunidade: “Para nós, não se trata apenas de um imóvel para nos acomodarmos, mas de um espaço que permita ser quem somos, com nossos modos de vida e aprendizados, com nossas culturas, com a nossa convivência e sobrevivência.”

Leia mais: Uma conversa com Itamar Vieira Junior sobre ‘Torto Arado’ e a educação brasileira

Transformando as universidades

De acordo com Bonin, é necessário refletir sobre a história da instituição universitária e como os campos disciplinares e as formas de conhecimento estão marcados por uma racionalidade moderna. Nesse sentido, as instituições são pouco interculturais.

“A presença indígena, por si só, multiplica essas racionalidades, abre a possibilidade para se pensar a produção de conhecimento a partir de várias cosmologias possíveis, tenciona os campos de produção do conhecimento e as formas de pesquisa”, explica a docente.

Com mais presença, racionalidades distintas passam a circular dentro do espaço acadêmico, influenciando e sendo influenciado por ele. “Mas, claro, estamos falando de um devir, porque, de fato, a presença indígena gera tensões por desacomodar um modo que já está mais ou menos constituído. Abre uma urgência que é pensar as metodologias dentro das salas de aula, de que modo se pode constituir um diálogo intercultural. Isso vai transformando por dentro a própria instituição”, pondera Bonin.

Essa presença também transforma áreas de silenciamento em torno das culturas e formas de vida indígenas. Em geral, com exceção de campos como Antropologia e História, pouco se produz conhecimento sobre as questões indígenas no Brasil de hoje, suas lutas, reivindicações, identidades e contribuições.

Ações afirmativas

Ações afirmativas são políticas baseadas nos princípios de igualdade de oportunidades. Em 2012, o Brasil instituiu um sistema de reserva de vagas para acesso às instituições federais de ensino superior, que obedece a um misto de critérios interrelacionados. Na prática, a lei federal prevê, primeiramente, que 50% das vagas por instituição, curso e turno devam se destinar aos alunos que estudaram na rede pública durante toda sua escolarização em nível médio.

Em seguida, estabelece uma segunda reserva de vagas, dentro do primeiro contingente, voltada para outras duas condições: uma proporção mínima de 50% de estudantes oriundos de famílias cuja renda mensal per capita seja igual ou inferior a 1,5 salário mínimo; e uma proporção de autodeclarados pretos, pardos e indígenas no mínimo igual à soma desses grupos no respectivo estado onde se encontra a IES, segundo o último recenseamento demográfico.

Essas políticas de ações afirmativas vêm mudando a cara das universidades. Apesar dos desafios, o número de pessoas indígenas cresceu nas universidades. Em 2012, ano da implementação da Lei de Cotas, a população de indígenas matriculados no ensino superior no Brasil era de 10.282. Em 2020 (data do último Censo da Educação Superior) esse número saltou para 47.267.

“Hoje, nós vemos os rostos de pessoas das classes populares, de pessoas do interior, de pessoas negras, de pessoas indígenas, de pessoas com deficiência. A gente tem conseguido minimamente romper o elitismo que estava inscrito na universidade brasileira. Essas políticas são fundamentais para que possamos imaginar uma universidade com caráter cidadão e democrático”, finaliza Bonin.

Leia mais: Lei de cotas completa 10 anos: o que mudou na última década?

You may also like

Comments

Leave a reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.