Parece filme de terror. Cadáveres jazem na porta das casas, atraindo urubus. O ar é fétido. Os raros transeuntes andam a passos ligeiros, como se fugissem da misteriosa doença. Carroças surgem de tempos em tempos para, sem cuidado ou deferência, recolher os corpos, que seguem em pilhas para o cemitério.
“Por toda parte, o pânico, o assombro, o horror”, exclama o deputado Sólon de Lucena (PB).
Como os coveiros, em grande parte, estão acamados ou morreram, a polícia sai às ruas capturando os homens mais robustos, que são forçados a abrir covas e sepultar os cadáveres. Os mortos são tantos que não há caixões suficientes, os corpos são despejados em valas coletivas e o trabalho se estende pela madrugada adentro.
“Esse grande flagelo parece zombar da fortaleza física do homem e deixa como rastro um número extraordinário de mortos e um exército de combalidos entregues à fraqueza, ao depauperamento, à quase invalidez”, afirma o senador Jeronymo Monteiro (ES).
O filme de terror ocorreu em 1918, quando a gripe espanhola invadiu o Brasil. A violenta mutação do vírus da gripe veio a bordo do navio Demerara, procedente da Europa. Em setembro desse ano, sem saber que trazia o vírus, o transatlântico desembarcou passageiros infectados no Recife, em Salvador e no Rio de Janeiro.
No mês seguinte, o país inteiro já está submerso naquela que até hoje é a mais devastadora epidemia da sua história.
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A gripe espanhola, como indicam os discursos acima, domina os debates do Congresso Nacional. As falas dos parlamentares integram o acervo histórico do Arquivo do Senado e do Arquivo da Câmara, em Brasília, e mostram como o Brasil de 1918 se comporta diante da doença.
Assim como outros prédios públicos do país, o Senado e a Câmara, no Rio (que tem o status de Distrito Federal), passam vários dias fechados. Não há funcionários suficientes para tocar as atividades burocráticas no auge da epidemia. Muitos convalescem e outros tantos morreram.
Após vários dias combalido, o senador Paulo de Frontin (DF) é recebido com festa na volta ao Senado.
“Tendo sido também vítima da espanhola e seriamente, Sua Excelência está aí rijo, cumprindo seus deveres com aquela atividade rara que todos lhe reconhecemos” diz, num discurso de boas-vindas, o senador Victorino Monteiro (RS).
Nem mesmo o presidente da República é poupado. Rodrigues Alves, eleito em março de 1918 para o segundo mandato, cai de cama “espanholado” e não toma posse. O vice, Delfim Moreira, assume interinamente em novembro, à espera da cura do titular. Rodrigues Alves, porém, morre em janeiro de 1919, e uma eleição fora de época é convocada.
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Entre as vítimas ilustres, também figura Olympio Nogueira, estrela do teatro e da música no Rio, bem no auge da carreira.
“Todas as classes, desde os humildes trabalhadores até aqueles que gozam do maior conforto na vida, foram alcançados pelo flagelo terrível, que bem parece universal”, constata o deputado Sólon de Lucena. “Dir-se-ia que a morte, não satisfeita com a larga messe de vidas ceifadas nos campos de batalha europeus, quis, na sua ânsia de domínio, estender até nós os seus tentáculos”.
Lucena (avô de Humberto Lucena, que seria senador nas décadas de 1980 e 1990) se refere à Primeira Guerra Mundial. Em outubro e novembro de 1918, as manchetes dos jornais brasileiros se alternam entre a gripe espanhola no país e as negociações de paz na Europa. É justamente o vaivém de soldados que faz o vírus mortal tocar todos os cantos do planeta.
Em todo o Brasil, os hospitais estão abarrotados. As escolas mandaram os alunos para casa. Os bondes trafegam quase vazios. Das alfaiatarias às quitandas, das lojas de tecido às barbearias, o comércio todo baixou as portas — à exceção das farmácias, onde os fregueses disputam a tapa pílulas e tônicos que prometem curar as vítimas da doença mortal.
“Nos subúrbios do Rio de Janeiro, as ruas ficam cheias de cadáveres porque as famílias ficam com medo de serem infectadas pelos mortos dentro de casa. Além disso, a medida facilita o trabalho de remoção das carroças da limpeza pública”, explica a médica e historiadora Dilene do Nascimento, da Casa de Oswaldo Cruz.
Os parlamentares apresentam uma série de projetos de lei com o objetivo de, em diferentes frentes, combater a doença e amenizar seus efeitos. Uma das propostas determina a aprovação automática de todos os estudantes brasileiros, sem a necessidade dos exames finais.
Citando sua própria experiência como professor da Escola Politécnica (atual escola de engenharia da UFRJ), o senador Paulo de Frontin defende o projeto:
O momento em que se exige do estudante o máximo esforço são os últimos três meses do ano letivo, quando ele se prepara para o exame final. Exatamente nessa época, grande parte dos alunos foi atacada pela epidemia reinante e muitos falecerem. Na Escola Politécnica, choramos a perda de mais de um. Aqueles que se salvaram estão em uma convalescença que se pode considerar longe de ser completa.
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O senador Mendes de Almeida (MA), dono da Escola Técnica de Comércio Cândido Mendes (hoje Universidade Cândido Mendes), no Rio, acrescenta: “Só na minha escola, mais de 35 professores não têm podido dar as suas aulas por motivo de saúde”.
Como 1918 já está chegando ao fim, o presidente interino Delfim Moreira acha mais prudente não esperar as votações do Senado e da Câmara e baixa em dezembro um decreto batendo o martelo de uma vez: aluno nenhum repetirá o ano letivo.
Em outra linha, o deputado Celso Bayma (SC) redige um projeto de lei ampliando em 15 dias o prazo para o pagamento das dívidas que vencem em plena epidemia. De acordo com ele, a moratória é necessária porque muitos comerciantes baixaram as portas, deixaram de lucrar e, por tabela, ficaram impossibilitados de honrar seus compromissos com bancos e outros credores.
“Os que vivem estes dias angustiosos sabem que a capital do país [Rio] tem necessidade de feriados, o mesmo sucedendo com a praça de São Paulo. Por esse meio, poderão os negociantes encobrir a situação aflitiva em que se encontram”, acrescenta Bayma, sem, contudo, conseguir a aprovação do projeto.
Faltam estatísticas confiáveis a respeito das vítimas no Brasil. Mesmo assim, não há dúvidas de que a epidemia é avassaladora. O gráfico de óbitos anuais da cidade de São Paulo mostra um salto gritante quando chega 1918. Num único dia, o Rio chega a registrar mil mortes.
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A devastação também pode ser dimensionada pelas ausências na eleição para o Senado ocorrida apenas na cidade do Rio em novembro de 1918. A capital tem 36 mil eleitores registrados, mas apenas 5 mil vão às urnas. Na eleição presidencial de oito meses antes, como comparação, 22 mil cariocas votaram.
“A eleição de senador foi uma eleição sem eleitorado. Tanto vale dizer, não foi uma eleição”, critica o senador Francisco Sá (CE), tentando, sem sucesso, anular a votação.
O governo proíbe as aglomerações públicas. Os teatros e os cinemas, além de lacrados, são lavados com desinfetante. Pela primeira vez, as pessoas ficam proibidas de ir aos cemitérios no Dia de Finados – não só para evitar as multidões, mas também para impedir que se veja o estoque de corpos insepultos.
“O que vemos são acontecimentos funestos, uma verdadeira hecatombe”, resume o deputado Azevedo Sodré (RJ).
Os jornais estão repletos de anúncios de remédios milagrosos que se dizem capazes de prevenir e de curar a gripe. A oferta vai de água tônica de quinino a balas à base de ervas, de purgantes a fórmulas com canela. A procura é tão grande que as farmácias se aproveitam da situação e levam os preços às alturas. No Rio, a prefeitura reage tabelando o preço dos remédios.
Na cidade de São Paulo, a população em peso recorre a um remédio caseiro: cachaça com limão e mel. Em consequência, o preço do limão dispara, e a fruta some das mercearias. De acordo com o Instituto Brasileiro da Cachaça, foi dessa receita supostamente terapêutica que nasceu a caipirinha. Coincidência ou não, uma das peças de maior sucesso em São Paulo em 1918 se chama A Caipirinha.
“A verdade é que a gripe não tem cura”, diz o médico Lybio Martire Junior, presidente da Sociedade Brasileira de História da Medicina.
Diante de uma doença mortal nova e da falta de informação, a população fica apavorada e acredita em qualquer promessa de salvação. Até hoje é assim. Basta lembrar os primórdios da aids.
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A epidemia escancara uma deficiência grave do Brasil: em termos de saúde, os pobres estão ao deus-dará. Não há hospitais públicos. Não é raro que as pessoas, assim que se descubram “espanholadas”, busquem socorro nas delegacias de polícia. Quem, aos trancos e barrancos, presta alguma assistência à população carente são instituições de caridade, como as santas casas e a Cruz Vermelha.
“As famílias ricas são menos atingidas do que as famílias pobres porque se refugiam em fazendas no interior do país, mantendo distância do vírus”, conta o historiador Leandro Carvalho, professor do Instituto Federal de Goiás e autor de dois estudos sobre a epidemia de 1918.
Dada a multidão que morre todos os dias, começa a correr no Rio a história de que a Santa Casa de Misericórdia, para abrir novos leitos, acelera a morte dos doentes em estado terminal. Isso se daria por meio de um chá envenenado administrado aos pacientes na calada da noite. Nasce, assim, a lenda do “chá da meia-noite”. Os jornais apelidam o hospital de “Casa do Diabo”.
O deputado Azevedo Sodré fica indignado com a campanha de difamação:
O povo, não sabendo a quem incriminar pela desgraça que o ferira e pelo abandono em que se achou, revoltou-se contra a Santa Casa de Misericórdia, que representa quase toda a assistência pública desta capital. O povo parece não saber que a Santa Casa, afora um subsídio pequeno que lhe concede o governo, vive do favor do público, desse espírito de filantropia tão vivo no seio da nossa população.
No auge da crise, prefeitos e governadores se dão conta de que não podem permanecer de braços cruzados. Com certo atraso, distribuem remédios e alimentos, improvisam enfermarias em escolas, clubes e igrejas e convocam médicos particulares e estudantes de medicina.
No âmbito federal, o que existe é a Diretoria-Geral de Saúde Pública, subordinada ao Ministério da Justiça, mas com atuação bastante tímida, cuidando apenas da barreira sanitária dos portos e da higiene da capital do país.
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O deputado Sodré afirma que a culpa da epidemia não é da Santa Casa, mas sim da Diretoria-Geral da Saúde Pública, por ter subestimado as notícias da gripe espanhola no exterior e não ter imposto quarentena aos navios vindos de fora, como o Demerara.
“Mesmo dias depois, ao irromperem os primeiros casos no Brasil, reinava em nossa repartição sanitária a mesma ignorância máxima. Presenciamos uma quase falência dos nossos serviços de higiene e assistência públicas.”.
Sodré, então, apresenta um projeto de lei que promoveria a diretoria a Ministério da Saúde Pública.
“Salvemos ao menos as aparências. Se ao governo não sorri a ideia de um Ministério da Saúde Pública, que nos diga o que pretende fazer, para que nós, o Congresso Nacional, inteirados do seu desejo, nos movamos, discutamos e resolvamos consoante as nossas funções no sistema representativo que rege o país”.
Apesar dos apelos, o projeto não avança. De qualquer forma, o susto da gripe espanhola faz o governo se mexer. Um ano mais tarde, na virada de 1919 para 1920, o Congresso Nacional aprova e o presidente Epitácio Pessoa sanciona uma decisiva reforma na estrutura federal de saúde.
A acanhada diretoria cresce, ganha responsabilidades e é rebatizada de Departamento Nacional de Saúde Pública. O novo departamento atua no combate à lepra, à tuberculose, à malária e às doenças venéreas. O escopo agora é nacional.
Assim, de forma indireta, a gripe espanhola planta tanto a semente do Ministério da Saúde, que surgirá em 1930 (como Ministério dos Negócios da Saúde e da Educação Pública), quanto a do Sistema Único de Saúde (SUS), que será previsto na Constituição de 1988.
Do mesmo modo abrupto com que chega ao Brasil, a gripe espanhola desaparece repentinamente. Em dezembro, já são raros os contágios. Foram tantas as pessoas infectadas entre setembro e novembro que o vírus praticamente não tem mais a quem atacar.
Enfim terminado o filme de terror, os cariocas usam o Carnaval de 1919 como forma de exorcizar o fantasma da gripe espanhola. O Rio assiste, nos bailes e nos blocos de rua, àquela que talvez seja a folia mais desenfreada de que se tem notícia na cidade. Das marchinhas aos carros alegóricos, o tema da festa é um só: o “chá da meia-noite” — que não bota medo em mais ninguém.
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A reportagem, publicada originalmente pela Agência Senado, é de Ricardo Westin.
Muito bacana esse texto, gostei.
Interessantíssimo! Podemos ver que em tempos de Covid19, a mesma burocracia e displicência ocorre. O povo com as mesmas atitudes de não acreditar, o comércio com a m Ana atitude de se aproveitar, e a política com a mesma atitude de desmerecer a doença. Continuamos a morrer aos montes. Definitivamente, não aprendemos com a história!
Li por auto o texto mais eu gostaria de saber como as igrejas se comportaram durante a gripe Espanhola….
É incrivel como o passado sempre se repete.
Totalmente tendencioso e ideológico.
Sob fogo Londres não fechou escolas…talvez por isso,pelos nossos professores,que ainda somos os piores no quesito que vocês chamam de”educação”que não conseguem diferenciar de ensino.
A verdade que agora em 2020/2021 não é muito diferente do que aconteceu na gripe espanhola quando chegou ao Brasil. A politica ainda é a mesma, muitas pessoas morrendo as pessoas parecem não se importar com a dor do outro.