Ensino Básico

A qualidade da formação de professores no Brasil, segundo o Enade

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Por José Maria de Vasconcellos e Sá

Faz algum tempo que tenho me debruçado na questão da formação de professores do ensino básico no Brasil. Aos desavisados, todos os professores de ensino básico precisam ter (ou deveriam ter) curso superior para entrarem em sala de aula. Existem três trilhas possíveis de cursos/carreiras nesse sentido.

  • A 1ª trilha é o curso de graduação de Licenciatura em Pedagogia, para os que pretendem ser professores da educação Infantil e do 1º ao 4º ano do ensino fundamental (antiga CA à 4ª série para os mais maduros).
  • A 2ª trilha são os cursos de Licenciatura em Letras, Matemática, Química, Física, Artes etc. para aqueles que pretendem ser professores dessas disciplinas do 5º ao 9º ano do ensino fundamental (antiga 5ª à 8ª série) e, também do 1º ao 3º ano do ensino médio (antigo 2º grau ou colegial).
  • A 3ª e última trilha ou possiblidade é a de profissionais graduados em outras carreiras fora da área de educação, realizarem o curso de graduação chamado de Formação Pedagógica para graduados que tem, em média, de um a dois anos de duração. Com estes cursos um Engenheiro, por exemplo, pode fazer a complementação pedagógica e dar aulas de física, química ou matemática do 5º ano do fundamental ao 3º do ensino médio. A ideia desta 3ª trilha é permitir que profissionais já formados em outras áreas fora da educação possam dar aulas nas suas áreas de expertise, aprendendo apenas a parte pedagógica que não viram nos cursos em que se formaram.

Formação dos professores: os resultados do Enade mostram que os futuros docentes conhecem muito pouco sobre o que vão ensinar a seus futuros alunos. Crédito: Pexels.

Falando agora da prova que o MEC (Ministério da Educação) obriga todos os alunos habilitados em fase de conclusão do curso de ensino superior a realizarem, o famoso Enade (Exame Nacional do Desempenho dos Estudantes). O exame acontece a cada três anos para um mesmo grupo de cursos definido pelo MEC.

Idealmente o Enade deveria ser anual, aplicado em todos os cursos, mas por questões logísticas e de custo acaba sendo de forma trienal. Assim, os alunos de cursos da área de educação fazem a prova a cada três anos. Os últimos resultados decorrem das provas realizadas em 2008, 2011, 2014 e 2017.

O grupo da educação estava programado para fazer o Enade em 2020, mas a pandemia mexeu com os planos. A proposta do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), órgão responsável pela elaboração e realização do Enade, é que a avaliação aconteça em novembro deste ano.

Analisando os resultados dos quatro últimos ciclos avaliativos, tivemos no total 13.429 cursos de Licenciaturas e 4.215 cursos de Pedagogia com 449.947 e 352.407 alunos, respectivamente, fazendo as provas. Analisando os dados temos resultados chocantes na perspectiva da formação de profissionais que irão educar nossas crianças e adolescentes pelos próximos 30 a 40 anos.

As notas do MEC foram ajustadas numa forma simplificada para ficar mais clara a compreensão. As explicações desses ajustes seguem logo ao fim do texto dos resultados para quem tiver interesse.

Resultados das notas dos nossos futuros professores

Notas dos alunos dos cursos de Licenciaturas

Podemos observar que dos mais de 100 mil formandos que realizaram as provas, mais da metade deles – ou até 61%, em 2017 – tiveram notas ruim ou péssimo. (Cabe lembrar que a prova do Enade não reprova os estudantes, mas é usada pelo MEC como instrumento de avaliação dos cursos; o aluno não tem penalidade se seu desempenho for ruim). Mesmo com notas ruins, os alunos se formam normalmente e podem lecionar.

Leia mais: Como os professores aprendem as competências que precisam ensinar

Notas dos alunos dos cursos de Pedagogia

Nos cursos de Pedagogia, o resultado é um pouco pior. Desde a prova de 2011 mais de 70% dos alunos – ou seja, dos futuros professores – tiveram nota ruim ou péssimo nas provas que fizeram. O agravante neste caso é que estamos falando dos professores da 1ª infância, que é justamente a base sedimentar mais importante para a formação do conhecimento em um ser humano. Se esta base fica deficiente, todo o alicerce construído depois repete o problema.

É importante entender também que o Enade avalia o conhecimento dos alunos sobre as matérias que eles vão ensinar.

Em outras palavras: os resultados mostram que os futuros professores conhecem muito pouco sobre o que vão ensinar a seus futuros alunos.

Fossem eles profissionais do mercado privado, essa questão da baixa produtividade se refletiria em desemprego. Mas como a grande maioria trabalha ou vai trabalhar em escolas públicas, e tem direito à estabilidade no emprego, esse problema se perpetua na forma de uma qualidade muito baixa na educação dos nossos jovens, consequência que aparece em todos os rankings internacionais dos quais o Brasil participa.

Leia mais: O que as pesquisas dizem sobre a qualificação dos professores no Brasil

Outro ponto importante é a questão da técnica de ensinar que os currículos nacionais, muitas vezes, não privilegiam por serem muito focados nas discussões teóricas e filosóficas da educação. Mesmo os poucos que conhecem o que vão ensinar, não aprendem as melhores técnicas para isto.

Deveríamos estar mais preocupados em ensinar os alunos a ler, interpretar e produzir textos, além de realizar as quatro operações matemáticas básicas – deficiências que, aliás, não raro são encontradas no alunado que chega à educação superior no Brasil. Nos cursos de Engenharia, por exemplo, os calouros têm dificuldade em fazer regra de 3 ou cálculos de porcentagens.

Deixo aqui algumas perguntas importantes para refletirmos sobre esta hecatombe.

  • Quais seriam as soluções adequadas para resolvermos a formação de novos professores com domínio do assunto que vão ensinar e, da forma (técnica) que vão ensinar para fazerem os alunos estudarem e aprenderem melhor?
  • O que fazer com os mais de dois milhões de professores que temos hoje formados e ativos no setor para diminuir estas lacunas abrasivas?

Um país que reporta este cenário (e que ainda não tem 100% de sua população com direito a água potável e, metade dela sem direito a saneamento básico, que são outros fatores prejudiciais ao desenvolvimento cognitivo das nossas crianças) não deveria se dar ao luxo de focar em nenhum outro problema antes de melhorar a qualidade da formação de seus professores.


Sobre o autor

José Maria de Vasconcellos e Sá é CEO da mantenedora da Universidade Veiga de Almeida no Rio de Janeiro-RJ , do Centro Universitário Jorge Amado em Salvador- BA, Presidente do Conselho da Great Schools S/A e sócio da Multiversa Consultoria. E-mail: jsa@multiversa.com.br.

Notas adicionais

Sobre a metodologia utilizada para calcular as notas apresentadas neste artigo. Para ser didático e o resultado ser de fácil compreensão, mesmo para quem não é da área de educação, foram feitos os seguintes ajustes em relação ao resultado dessas provas:

  • As notas são divulgadas pelo MEC por curso em valores que vão de 1 a 5 com várias casas decimas onde 1 representa o pior resultado e 5 o melhor. Essas notas são resultado de fórmulas estabelecidas pelo MEC nas provas onde os alunos tem uma nota de 0 a 100 na avaliação de conhecimentos específicos que deveriam ter do curso (75% de peso) e conhecimentos gerais (25% de peso). Essa nota final de 0 a 100 é convertida na nota Enade contínua de 0 a 5 proporcionalmente com as casas decimais.
  • O MEC divulga essas notas transformando a nota ENADE contínua no conceito ENADE usando a nota de 1 a 5 sem as casas decimais mas com um arredondamento baseado no conceito de variável discreta que faz com que todos os alunos que tiraram uma nota entre 0,945 e 1,945 tenham nota 2, quando normalmente a 1ª nota (0,945) seria 1 por arredondamento matemático simples.
  • Na tabela dos resultados apresentados, para simplificar e ficar mais fácil de ser compreendido, foi usada a nota real dos alunos no conceito ENADE contínuo e não a nota Conceito Enade atribuída pelo MEC a partir da variável discreta. Essa nota foi transformada nos conceitos Excelente (4,6 a 5,0), Bom (3,6 a 4,5), Regular (2,6 a 3,5), Ruim (1,6 a 2,5) e, Péssimo (0,1 a 1,5) para fins didáticos.
Redação Pátio
A redação da Pátio – Revista Pedagógica é formada por jornalistas do portal Desafios da Educação e educadores das áreas de ensino infantil, fundamental e médio.

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2 Comments

  1. Abração, José Maria.
    Como sempre, um português castiço para colocar na tela um raciocínio exato. Ora, se não?!
    Você foi ao ponto final da linha do trem pedagógico, onde desembarcam ali professores aqueles que ao longo das demais estações embarcaram estudantes.

    A colheita amarga na formação que ali se apeia tem no caminho os maus-tratos da teorização excessiva a que os passageiros têm sido submetidos nas pedagogias e licenciaturas. Some-se os cada vez mais ralos e sem cobrança ou supervisão estágios de prática docente.
    Uma lástima.

    Dez ou quinze anos se foram desde que, num repleto auditório na PUC do Paraná, tive a honra de estar ao lado do Claudio Moura Castro numa plenaria sobre formação de professores para a Educação Básica. Você, como ele, ambos precisos no diagnóstico ao descerem do trem sobre a qualificação dos nossos professores.
    Mudaram as estações. Mas, nada mudou.
    E, se alguma coisa aconteceu, em nada contribuiu no propósito desejado. Pois remanesce a baixa performance na aferição do ENADE.

    Importa complementar no seu artigo um detalhe seminal, que trago já daquela quadra, e pontuado pelo mestre Claudio. Os indicadores mostram que ainda no primeiro embarque, quando da compra do bilhete para cursar Pedagodia ou Licenciaturas, que o custo do ingresso, medido este em notas de corte do Sisu, do Prouni ou do Fies, era – e tem sido, o mais barato na comparação com as demais áreas dos cursos de graduação.

    A maioria absoluta dos ingressantes para os itinerários docentes concentra-se entre as menores notas de corte qualificáveis para o acesso ao ensino superior.
    Assim posto, e pela matemática evidenciado, cabe às IES dedicarem-se em dobro para fazer a diferença na trajetória, e não meramente ficarem sentadas à beira de um caminho que parece não ter mais fim.

    É preciso romper o ciclo que já se alonga por décadas no Brasil, que é o de ter para os futuros mestres a seleção recorrente feita entre as menores notas qualificáveis, e a triste evidência de tê-los -ao fim da viagem acadêmica, novamente pontuando no raso quando da aferição do desempenho no Enade.

    Mas, quem sabe se esta terra ainda não há de tornar-se em um grande Portugal?
    Lá, na Pandemia, o Presidente e o Primeiro Ministro foram às escolas, emparelharam-se com os professores num esforço coletivo para manter a educação como prioridade nacional. Escolas paradas? Aprendizagem contínua, foi a resposta lusitana.

    E por aqui, na Terra de Santa Cruz? O que foi que veio do Olimpo do Planalto? Apenas raios, malditos raios!
    Bjs e abraços.
    Vianney

    1. Ótimo ponto adicional Vianney. Concordo 100% com a questão da entrada. Como a carreira tem uma demanda altíssima e você tem esses dados melhor do que eu – acho que só perde em demanda de número de profissionais no Brasil para a área de segurança – acaba que a educação virou uma opção com sarrafo de entrada muito baixo e alta demanda. Mas me ajuda aí em outro ponto com teus dados globais. Qual país nas dimensões de espaço geográfico e população da Terra Brasílis conseguiu fazer isto via educação privada que é uma solução defendida por muitos com a ideia dos vouchers ?

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