Não é exagero dizer que a Uniamérica, de Foz do Iguaçu (PR), é uma das faculdades mais inovadoras do Brasil. Fundada no ano 2000, por um grupo de empresários para suprir a falta de mão de obra especializada na cidade, a instituição acabou sofrendo com a concorrência e quase faliu em 2012. Só não quebrou porque os fundadores entregaram a faculdade na mão de Ryon Braga.
De lá para cá, o médico especialista em Neuropedagogia e um dos mais renomados consultores brasileiros em ensino superior recuperou não apenas o prestígio como a saúde financeira da instituição de ensino. Como? Empregando um modelo híbrido de ensino em todas as graduações da Uniamérica. Nele, os alunos estudam em casa e só têm aulas práticas na faculdade. Isso quando a aula acontece lá. Para centenas de estudantes, as atividades não ocorrem em uma sala de aula convencional, mas nos corredores e laboratórios de empresas do setor produtivo.
Inovações como essas foram vitais para minimizar os efeitos da crise do coronavírus no Centro Universitário União das Américas. “Quando chegou a pandemia, tivemos uma facilidade grande de adaptação”, afirma Ryon Braga. Na entrevista a seguir – realizada pelo Collaborate, plataforma de vídeo conferência da Blackboard –, Braga conta os bastidores da operação na Uniamérica e projeta um cenário nebuloso para o ensino superior. A conversa foi editada para efeitos de clareza e concisão.
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De repente surge uma pandemia e todo mundo começa a falar de ensino híbrido, algo que a Uniamérica é pioneira. Que tipo de adaptação foi feita na instituição?
A Uniamérica já trabalhava com ensino híbrido há seis anos. Não apenas o modelo híbrido entendido como um percentual e um ritual presencial, mas o híbrido propriamente dito, com interação total entre as atividades síncronas e assíncronas, trazendo o conteúdo em mídias diferentes e a interação do aluno em diversas plataformas, inclusive no presencial. Isso dentro dos cursos presenciais, sem falar do EAD. Então, quando chegou a pandemia, tivemos uma facilidade grande de adaptação do ensino.
No dia em que Foz do Iguaçu decretou a suspensão das aulas presenciais, no outro já estávamos adaptados, funcionando e não perdemos nenhum dia de atividade. A virada de chave foi automática.
Continuamos com tudo que tínhamos na plataforma Blackboard (ambiente virtual de aprendizagem), além de um material complementar. A penas trocamos algumas atividades presenciais por atividades telepresenciais. E só. Os alunos já sabiam usar a plataforma e o Collaborate. Nem precisamos gastar tempo na habitação para elas, o que facilitou bastante a migração para as aulas remotas.
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Qual é a diferença desse ensino telepresencial e o que era feito conceitualmente a distância? O ensino hibrido da Uniamérica tinha muitas atividades assíncronas e um número menor de atividades síncronas na plataforma. Por uma razão: a maior parte das atividades síncronas eram feitas presencialmente; uma pequena parte de interação e de projetos eram feitas de forma telepresencial. Com a pandemia, obviamente, ampliou a parte telepresencial do modelo. Fora isso, não teve nenhuma diferença estrutural maior.
Como os estudantes reagiram? Passados alguns meses, os alunos sentiram um pouco de falta do contato humano e da presença física na instituição. Mas a motivação pelo estudo e a qualidade da aprendizagem se manteve integralmente.
Um dos problemas do ensino remoto em massa é a falta de acesso à internet ou de dispositivo para os alunos estudarem. Mas a Uniamérica praticamente não enfrentou dificuldades nesse sentido. Pode nos contar como? O modelo da Uniamérica exige que o aluno tenha o próprio notebook. Está no contrato de matrícula que o aluno é obrigado a ter um notebook particular, senão não pode estudar na Uniamérica, dada a característica do modelo híbrido de ensino. O notebook é quase um substituto do caderno. Se não tem caderno, não estuda; se não tem notebook, não tem como estudar no híbrido.
Por isso que, comparada com outras instituições de ensino, quase não tivemos problemas de acesso. Dos 2 mil alunos que temos, apenas três tiveram dificuldades. Então eles iam até a instituição, ocupavam uma sala isolada e lá se conectavam: um porque o notebook quebrou, outros dois por problemas de internet. Depois, outros estudantes acabaram indo à instituição porque não tinham em casa um ambiente privativo para eles estudarem.
A gestão da aprendizagem parece bem controlada. Mas e a gestão financeira? A crise deve ter afetado os alunos e consequentemente a Uniamérica. O que vocês fizeram? A situação aqui é bem ambígua. De um lado, o nosso centro universitário está numa cidade muito afetada pela pandemia. Foz do Iguaçu depende do turismo e do comércio. A fronteira com o Paraguai foi fechada, os hotéis, os atrativos como as Cataratas do Iguaçu: tudo foi fechado. Então o impacto no emprego e na renda dos nossos alunos foi gigantesco.
Mas a Uniamérica é uma das poucas instituições que eu conheço que tem uma pró-reitora de relacionamento com aluno. Temos um relacionamento muito próximo com eles e com o conselho de líderes estudantis, formado por representantes de cada turma. São 60 líderes. O diálogo, que era mensal, na pandemia se tornou semanal para irmos ajustando as coisas.
A gente combinou com esse conselho que não era inteligente dar nenhum desconto linear para os alunos, como 20% ou 30% para todo mundo. Porque não tivemos nenhuma economia significativa, a não ser a economia de luz e de água do campus, e eventualmente a limpeza. O que é uma economia pequena, porque a gente manteve os docentes com a mesma carga horária.
Essa decisão junto ao conselho estudantil foi homologada pela reitoria e pela mantenedora [Associação Internacional União das Américas – AIUA]. Em vez de um desconto universal, tratamos individualmente todos os casos de perda de emprego comprovado – para que os alunos não ficassem sem estudar. Para uns fizemos um parcelamento maior das mensalidades vencidas e a vencer. Para outros, postergamos integralmente vários meses, para além do termino do curso. Até retomar o emprego ou a renda, ele não paga a mensalidade. Essa medida nos ajudou a evitar uma evasão maior.
Mas houve uma evasão significativa? Sim, a evasão foi maior do que nos anos anteriores. Porque muita gente vinha falar comigo e dizia: “Não se trata da Uniamérica postergar o meu pagamento, eu estou sem emprego, estou sem o que comer, eu não vou continuar estudando, vou buscar uma forma de sobreviver, depois eu volto a estudar”. Então, mesmo com essas estratégias, a gente teve uma evasão bem acima dos anos anteriores. Tínhamos uma evasão semestral na casa de 11% e ela pulou para 17%.
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E quanto à captação? O fato do ensino hibrido estar no DNA da Uniamérica provocou uma maior procura dos alunos? Sim, aconteceu um reflexo muito positivo. Não em março, quando chegou a pandemia, porque as pessoas já estavam matriculadas. Foi agora, na virada do semestre.
Muitas instituições de ensino superior demoraram para retomar as atividades. Algumas ficaram quase três semanas com aulas suspensas até oferecer alguma coisa para o aluno. Outras IES improvisaram, de forma muito malfeita, e o aluno não ficou satisfeito.
Como ficou patente que a Uniamérica estava mais preparada, essa percepção se refletiu em uma quantidade maior de transferência neste semestre – e certamente isso vai impactar positivamente a nossa captação nos próximos semestres.
Mas, de forma geral, a captação de novos alunos caiu muito. Caiu porque muitos postergaram a decisão de voltar a estudar. A gente projetava captar só 30% do que captamos no mesmo período do ano anterior, que foi a média do setor. Acabou que captamos 70%. Ou seja, o dobro do que estimamos que iríamos captar. Mas, mesmo assim, foi um volume de alunos abaixo do ano anterior.
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O sr. falou sobre a empregabilidade dos alunos. No mês que vem, outubro, será lançado o Google Career Certificates, que promete oferecer cursos para profissões de alta demanda, concorrendo com as faculdades tradicionais. O que sr. pensa sobre esse movimento? Esse é um movimento que a gente vinha prevendo há uns seis, sete anos. O setor produtivo vem sinalizando para o mundo acadêmico a sua insatisfação com o perfil de alunos que está sendo formado.
Os motivos são aqueles que já sabemos: as universidades promovem cursos muito teóricos, com currículo defasado da realidade do mercado, que não desenvolvem competências adequadas para trabalhabilidade, mais focado no conteudismo e na aquisição de informações desatualizadas.
O setor produtivo sempre reclamou da academia por causa disso. Então, era natural que as empresas não ficassem só na crítica e, com o avanço da tecnologia, começassem a fazer alguma coisa, principalmente nas áreas não-regulamentadas. Para um jovem da área de TI, por exemplo, vale muito mais a pena fazer um bootcamp de desenvolvimento e mais três ou quatro certificações especificas, como Microsoft e Amazon, do ter um diploma de curso superior dessa área.
Isso faz com que as IES tenham que repensar seu modelo de negócio. Com certeza. Não faz sentido para o aluno escolher um curso de 4 ou 5 anos, como Engenharia de Software, Tecnologia da Informação ou Engenharia da Computação, com currículo pré-definido. Ao final do curso, o conhecimento dos primeiros semestres está obsoleto, pois a tecnologia evolui a cada 6 meses.
As empresas, por outro lado, têm muito mais flexibilidade. O Google pode mudar o currículo do curso a cada semestre. Já as faculdades tradicionais são engessadas, demoram dois, três anos para fazer uma mudança curricular – que, ao ser aprovada, já está ultrapassado.
Não funciona mais assim. Um curso na área de tecnologia precisa ser com uma arquitetura curricular aberta. Por isso a Uniamérica não tem nada pré-definido no currículo. O aluno começa o curso com uma proposta inicial, claro, mas tudo pode mudar longo do curso. A maioria das instituições tem dificuldade para lidar com isso – em parte pelo modelo mental da academia, que nunca foi assim, e em parte por causa do processo regulatório.
A parte de regulamentação dá trabalho e, muitas vezes, gera muita dor de cabeça. Como ser uma faculdade inovadora, apesar da burocracia do Estado? Você falou as palavras certas: o processo regulatório dá trabalho e dor de cabeça. Mas ele não é impossível de ser ajustado. Com esforço e vontade, a gente consegue.
Vou dar um exemplo: um curso de educação a distância só pode, de acordo com a regulamentação, ter 30% de aulas presenciais e os 70% em aulas virtuais. A Uniamérica tem um curso de Farmácia EAD dentro de uma indústria farmacêutica [o Biopark, em Toledo (PR), parque tecnológico ligado à Prati-Donaduzzi]. Lá, o aluno fica 40 horas por semana. Ou seja, é um curso de período integral em que ele fica 40 horas dentro do campus – nesse caso, a própria indústria.
Mesmo assim, o curso atende a norma do MEC. Nós articulamos esse curso para ficar dentro das regras do jogo. Você já ouviu falar em curso de EAD com 40 horas dentro do campus por semana? Por isso eu digo que é possível ser flexível. O MEC, a cada nova diretriz, está permitindo flexibilizar. Ainda mais nesse momento pós-pandemia.
O problema é que as instituições ainda estão com um modelo mental de duas décadas atrás. Até meados da década de 90, era impossível fazer isso; a regulamentação era tão rígida que quase dizia quais disciplinas nós precisávamos ministrar.
Hoje, as IES só não mudam porque não querem. O MEC não exige mais currículo por disciplinas. Não à toa, a Uniamérica só trabalha com currículo baseado em projetos.
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O sr. poderia falar mais sobre esses cursos onde as aulas acontecem dentro das indústrias? A Uniamérica fez um projeto para trazer o setor produtivo para a sala de aula – e estamos conseguindo atingir o objetivo. Fizemos parcerias com 200 empresas, ONGs, associações de moradores, governo etc. para trazer a demanda do mercado para a sala de aula.
Mas em vez de fazer um polo EAD em uma casa ou em uma salinha alugada, por que não levar a sala de aula para o setor produtivo? A gente pensou nisso. Lembra do exemplo que eu te dei o nosso curso de Farmácia? Ele não está em um polo EAD, mas na Prati-Donaduzzi, que é a segunda maior indústria de genéricos do Brasil. Lá, rodamos mais de 200 alunos do curso de Farmácia. O aluno fica 4 horas estagiando na indústria e mais 4 horas em sala: duas horas são com o professor e duas horas na plataforma. No total, são oito horas por dia imerso na curso, 40 hora por semana.
E como fez com o curso de Farmácia durante a quarentena? Só a interação de 2 horas com o professor presencial é que se tornou telepresencial. O estágio dentro da indústria não foi alterado porque a indústria não fechou na pandemia.
Quais são as outras empresas que fizeram parceria desse nível com a Uniamérica? A gente tem parceria com a Nutrimental, uma indústria de alimentos de São José dos Pinhais (PR), na região de Curitiba. Lá, os alunos dos cursos de Administração, Nutrição, Engenharia de Alimentos e Engenharia de Produção se formam resolvendo os problemas daquela indústria.
Em Foz do Iguaçu, mas não no campus da Uniamérica, lançamos no ano passado o primeiro curso superior do Brasil de Engenharia de Energias Renováveis, em parceria com o Centro Internacional de Energias Renováveis (CIBiogás), sediado dentro da Itaipu Binacional. Em 2020, criamos em Matelândia (PR) o curso de Gestão da Produção Industrial dentro da Lar, uma cooperativa de agronegócio forte aqui no Paraná.
Essa proximidade com a indústria deve gerar uma otimização de recursos fantástica. Exatamente. Eu não sei como ninguém pensou nisso aqui no Brasil. Se uma instituição abrir um curso de Farmácia, ela vai gastar 300, 400, 500 mil reais para fazer um laboratório mínimo para os alunos. Já os alunos da Uniamérica estão na Prati-Donaduzzi utilizando equipamentos avaliados em mais de 15 milhões de dólares – o que uma faculdade isolada, como a nossa, não teria condições de adquirir.
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Voltando aos efeitos da pandemia: o que o setor privado de ensino superior pode esperar para os próximos meses? Tem algumas variáveis. De acordo com a composição delas, teremos um cenário pior ou melhor. Além da vacina, que é uma variável que vai pesar muito, temos outra variável em jogo: o adiamento da entrada no curso superior.
Muitas pessoas decidiram ingressar na faculdade só no ano que vem, o que gera uma reserva maior de mercado. Ou seja, tem mais gente para entrar na graduação no ano que vem do que normalmente entraria. O problema é o adiamento do Enem, que consequentemente gera adiamento do Fies, do Prouni, do Sisu e tudo mais.
O aluno que estaria pronto para entrar na faculdade em fevereiro, só vai entrar em abril. Por isso que, com ou sem vacina, o primeiro semestre de 2021 seguirá difícil para as instituições de ensino superior.
A dificuldade será ainda maior se as IES tiverem que continuar trabalhando no modelo misto; obviamente haverá uma atualização em todo Brasil para a retomada das aulas presenciais, mas haverá pessoas que por algum motivo não poderão participar dessas atividades. Isso vai causar um desafio para as instituições – ou seja, manter em paralelo as duas coisas acontecendo, já que ela não vai querer aumentar custos colocando dois professores, um para a aula presencial e outra para a aula online.
Os desafios são grandes. O maior deles talvez seja justamente esse, o de definir qual vai ser o modelo predominante no pós-pandemia. O que vais sobrar disso tudo? Qual é a justa medida entre a virtualidade e a presencialidade? Qual é a justa medida entre a interação e o estudo independente do aluno – e como ele vai ser mediado?
Todas essas perguntas não têm respostas fáceis. Mas quem realmente estruturar melhor a justa posição desses componentes, dentro das necessidades que os estudantes têm, certamente será muito mais beneficiado dentro do cenário competitivo que a educação superior terá no Brasil. Os novos líderes são aqueles que vão se adaptar melhor à nova realidade de um modelo mais integrado, onde as coisas se misturam de um jeito mais inteligente do que eram definidas no passado.
Leia mais: O ensino superior depois da pandemia
Com colaboração de Danielly Oliveira.
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