Ensino Superior

Como o racismo estrutural impacta o ensino superior

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No dia 19 de julho, a professora Gláucia Aparecida Vaz chegava para dar aula na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) quando, após passar a catraca da recepção, percebeu que um aluno a aguardava, segurando o elevador.

O estudante se aproximou e disse que queria discutir uma questão do trabalho que ela havia passado para a turma – o jovem acreditava que deveria ter tirado a nota máxima, 15, e não 14. Após a professora dizer que a nota estava correta e não seria alterada, a discussão tomou outro rumo.

O universitário (que não teve seu nome divulgado) disse que a professora “não sabia qual era o lugar dela”. Também teria falado que ela “continuaria sendo perseguida e odiada”. Gláucia é uma das poucas docentes negras da instituição.

A direção da universidade afirma que tomou conhecimento do fato somente no dia 23 de agosto e que na mesma data encaminhou o processo à Corregedoria — instância responsável pela análise de todos os casos desta natureza dentro da UFRGS. No dia 16 de outubro, houve definição pela abertura de processo. O aluno não foi afastado.

O racismo estrutural no ensino superior se expressa não apenas por meio de discriminação e desqualificações, mas também na exclusão das histórias, línguas e conhecimento desses povos nos currículos.

O racismo estrutural no ensino superior se expressa não apenas por meio de discriminação e desqualificações, mas também na exclusão das histórias, línguas e conhecimento desses povos nos currículos. Crédito: Jefferson Peixoto/Prefeitura de Salvador.

O racismo estrutural

No Brasil, o racismo afeta especialmente pessoas negras, pardas e indígenas. Esse tipo de preconceito é originado do período colonial e se dá em diversas situações, locais e formas.

Para além do racismo escancarado (ataques verbais e físicos), as expressões “racismo oculto”, “estrutural” ou “sistêmico” chamam atenção para a posição que essas pessoas ocupam na sociedade — geralmente, por meio de “insinuações” de que elas não deveriam ocupar uma determinada função ou considerando que suas opiniões e ações “valem menos” que a de uma pessoa branca.


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Instituições de ensino superior (IES) não escapam a essas questões. Embora a educação seja o melhor caminho para alcançar a equidade racial, paradoxalmente, o ambiente acadêmico muitas vezes pode se tornar um espaço de propagação do preconceito.

Racismo no ensino superior

O racismo estrutural dentro das universidades, faculdades e centros universitários se expressa não apenas por meio de discriminação e desqualificações, mas também na exclusão das histórias, línguas e conhecimento desses povos nos currículos. Ele está materializado na participação reduzida de pessoas indígenas e negras no quadro de estudantes, professores, autoridades e servidores.

Esse preconceito não afeta apenas as possibilidades de acesso ao ensino superior, mas também a qualidade da formação que as IES oferecem, a investigação que realizam e o seu papel na formação dos cidadãos e da opinião pública.

E, como também permeia a formação de professores, irradia-se para todo o sistema educacional. Tudo isso prejudica a sociedade, que permanece desigual e se priva do conhecimento e da contribuição dessas pessoas.

Docência branca

“Quantos professores negros você teve — ou tem — no ensino superior?”. Essa é a pergunta que guiou a tese de doutorado do jornalista Wagner Machado da Silva. De acordo com o trabalho, somente 20 professores negros atuam nos cursos de Comunicação no Rio Grande do Sul. Ou seja, dos 754 docentes, apenas 2,65% são pretos e pardos.

Esse, infelizmente, não é um retrato que se limita aos cursos de Comunicação — dos 2.852 professores efetivos na UFRGS, apenas 53 se consideram negros, o que corresponde ao ínfimo percentual de 1,85%. E nem ao Sul do país —o Brasil inteiro conta com pouco mais de 24,1% dos docentes universitários negros, de acordo com o Censo da Educação Superior.

Em entrevista ao Desafios da Educação, Machado explica que a ideia da sua tese é questionar por que há tão pouco professores negros na academia. “Se não tem quem forme, não vai haver identificação, reconhecimento e valorização dos alunos”, afirma.

Outro ponto é que esses professores conseguem, por meio de suas vivências, se conectar com os desafios dos alunos negros. E estimulam os demais estudantes a pensarem para fora de suas zonas de conforto.

Para Machado, enfrentar o racismo dentro da educação superior é algo muito complexo. “Porque quem toma as decisões é quem está com a caneta na mão, e normalmente são pessoas brancas”, diz o doutor em Comunicação. “Muitos lugares dizem ser antirracistas, mas só até a segunda página.”

A segunda página é onde as mudanças aconteceriam de fato. Mas não é isso que os dados mostram.


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Impactos no mercado de trabalho

Quanto mais alto, mais branco é o cargo. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que as desigualdades sociais por cor ou raça seguem evidentes no mercado de trabalho. Pessoas brancas com ensino superior completo ou mais ganham em média 50% a mais do que as pretas e cerca de 40% a mais do que as pardas.

Em 2021, o rendimento médio dos trabalhadores brancos era de R$19 por hora, mas para os pretos e pardos esse valor era bem menor, R$10,9 e R$11,3. O estudo aponta que os rendimentos são maiores entre aqueles que têm maiores níveis de instrução, mas as diferenças por cor permanecem nesse recorte.

Os ocupados pretos ou pardos eram maioria (53,8%) no mercado de trabalho em 2021, mas estavam em somente 29,5% dos cargos gerenciais, enquanto os brancos ocupavam 69% deles.

A desocupação, a subutilização e a informalidade acaba sendo lugares recorrentes para as pessoas negras. Em 2021, por exemplo, as taxas de desocupação foram de 11,3% para os brancos, de 16,5% para os pretos e de 16,2% para os pardos. “É difícil incentivar um jovem negro a sonhar alto se ele não se enxerga nos espaços de poder e de tomada de decisão”, lamenta Wagner Machado.

Para a deputada federal Daiana Santos (PCdoB-RS), existem muitas dificuldades históricas para superar no Brasil. “Por isso é necessário políticas públicas eficientes desde a base educacional até o mercado de trabalho”, defende ao Desafios da Educação.

A nova Lei de Cotas foi aprovada na Câmara dos Deputados e traz mudanças às políticas públicas de acesso ao ensino superior. Crédito: Câmara dos Deputados.

Lei de Cotas

Em um país desigual como o Brasil, as políticas afirmativas nasceram a partir da ideia de reparação histórica, cultural e social. Dessa forma, a Lei de Cotas foi projetada para reduzir a exclusão social de grupos com pouca — ou nenhuma — representatividade.

Em agosto, uma nova Lei de Cotas foi aprovada na Câmara dos Deputados e, em outubro, no Senado Federal. A legislação garante a reserva de vagas nas universidades e institutos federais para estudantes negros, pardos, indígenas, com deficiência e de baixa renda da escola pública.

Uma das principais mudanças que a nova lei prevê é a adoção de ações afirmativas para o ingresso de pessoas cotistas também na pós-graduação.

“Em um mercado de trabalho cada vez mais competitivo, oportunizar o acesso aos programas de pós-graduação é fundamental para que profissionais negros possam se especializarem e terem mais chances de boas colocações em suas áreas”, explica Santos.

Já Machado defende a efetivação da lei. “Não dá para aceitar a falta de presença negra nas universidades públicas quando se tem cotas”, diz. Para ele, garantir a equidade racial no ensino superior é uma das únicas maneiras de minimizar o problema. “Não tenho esperança de que a realidade mude muito, mas tenho desejo que mude aos poucos”.


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1 Comment

  1. Super essencial abordar mais esses temas até mesmo dentro das universidades! Matéria excelente.

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