“Quando eu era mais nova, pensava que mulheres não poderiam ser cientistas. Todos os desenhos que eu assistia na televisão mostravam os cientistas como homens”, conta a estudante Analu Richter de Andrade, de 12 anos.
Moradora da cidade catarinense de Fraiburgo, ela participou da segunda edição do curso gratuito Menina Ciência – Ciência Menina, um projeto de extensão da Universidade Federal do ABC (UFABC), realizado em novembro de 2020 de forma remota por conta da pandemia.
Assim como outras iniciativas semelhantes no país, o projeto procura aproximar meninas das áreas conhecidas como STEM: ciência, tecnologia, engenharias e matemática. “Sempre me interessei por ciência, mas não conhecia nenhuma mulher cientista antes do curso. Agora sempre pesquiso sobre elas no YouTube”, diz Andrade.
Durante cinco semanas, ela e outras 119 estudantes com idades entre 11 e 14 anos, divididas igualmente entre escolas privadas e públicas, conheceram pesquisadoras brasileiras, fizeram experimentos em casa – como um relógio solar construído com uma garrafa PET – com a supervisão remota de 31 monitoras, em sua maioria alunas de graduação e pós-graduação da UFABC (Universidade Federal do ABC Paulista), mas também de outras universidades do país.
As estudantes ainda assistiram a palestras e participaram de rodas de conversa com pesquisadoras das áreas de matemática, física, biologia, astronomia, química, filosofia, história da ciência, entre outras.
“Os livros didáticos mostram mais cientistas homens. Isso contribui para que as meninas pensem que não podem ocupar esse lugar”, observa a física Maria Inês Ribas Rodrigues, da UFABC, coordenadora do projeto. Em uma das primeiras atividades, as estudantes são convidadas a desenhar como veem um cientista em seu dia a dia.
Ao final do curso, repetem o processo – o exercício é conhecido como Teste desenhe um cientista (Draw-a-Scientist-Test), desenvolvido na década de 1980 pelo historiador David Chambers, da Universidade Deakin, na Austrália. “É comum que os primeiros desenhos apresentem homens de jaleco, descabelados. Depois do curso, elas desenham mais mulheres e, muitas vezes, até elas próprias como cientistas”, relata Rodrigues.
Segundo a organizadora, como um dos objetivos do projeto é humanizar quem faz ciência, as cientistas não se apresentam apenas pela profissão: são mães, filhas, esposas. Ou seja: mulheres como quaisquer outras. Perceber isso fez diferença para a estudante Sarah Lima Pinheiro, de 12 anos, da capital paulista. “Eu já pensava em ser bióloga, mas essa ideia ficou mais forte depois do curso, porque me pareceu ser mais possível do que antes”, conta.
Em sua primeira edição, em novembro de 2019, o Menina Ciência – Ciência Menina reuniu 50 estudantes nos auditórios e laboratórios da UFABC. Tanto a primeira quanto a segunda edição receberam por volta de 2 mil inscrições cada uma e as vagas foram preenchidas por meio de sorteio.
Segundo Rodrigues, foi necessário repensar a realização quando a universidade paralisou as atividades devido à pandemia, em março de 2020. “Tivemos que nos readaptar ao virtual.
Nesse meio tempo, busquei me aproximar dos resultados positivos de outros projetos, tais como o Astrominas”, conta ela, referindo-se ao projeto capitaneado pela astrônoma Elysandra Figueredo Cypriano, da Universidade de São Paulo (USP), que teve sua primeira edição realizada on-line em julho de 2020.
Desde 2018 a equipe do Astrominas, formada por alunas de graduação e pós-graduação do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, leva oficinas de astronomia a eventos que procuram incentivar meninas a conhecer e gostar de ciência.
Em abril de 2020 o grupo faria seu primeiro encontro oficial, planejado para receber 100 estudantes do 9º ano do ensino fundamental ao 2º ano do ensino médio. Para isso, convidaram palestrantes das áreas de ciências exatas e oceanografia da universidade. “As meninas caminhariam pela USP e visitariam os laboratórios e museus. Com tudo quase pronto, veio a pandemia. Minhas alunas, que ajudam na organização, ficaram muito tristes”, conta Cypriano.
Com experiência em ensino a distância, a astrônoma propôs uma edição on-line, o que permitiu a ampliação para 600 vagas, sorteadas entre alunas de escolas públicas e particulares – ao todo, foram 10 mil inscrições.
“As estudantes foram divididas em grupos de WhatsApp formados por cinco meninas e uma monitora, que chamamos de fadas- madrinhas”, conta Cypriano. Eram 80 jovens cientistas de astronomia, física, geofísica, ciências atmosféricas, entre outros cursos.
Durante cinco semanas, as participantes tiveram até duas horas de atividades por dia, de segunda a sexta-feira, entre aulas, palestras e experimentos. Também conheceram as trajetórias de vida de cientistas brasileiras. As monitoras lançavam desafios diários e acompanhavam o processo.
Ao final, todas as alunas que cumpriram os desafios ganharam um certificado. “Não queremos necessariamente transformá-las em cientistas, mas ter certeza de que vão exercer sua cidadania plena, conhecendo o processo científico, questionador e crítico”, avalia Cypriano.
A estudante Mariana Milena Prado de Sá, de 17 anos, da cidade goiana de Catalão, já gostava muito de física e de astronomia quando foi admitida na terceira chamada do curso, depois de ficar na lista de espera. Até então, pensava fazer engenharia da computação.
“Depois de todas as atividades que tivemos, vi que poderia juntar tecnologia e astronomia e decidi cursar engenharia aeroespacial”, diz. Chamou sua atenção as palestrantes convidadas serem de diferentes regiões do Brasil. “Vi tantas cientistas de diferentes culturas que conseguiram alcançar seus sonhos. Foi inspirador.” Assim que o curso terminou, ela criou um perfil no Instagram para divulgar ciência e a trajetória de mulheres cientistas. “Crio os conteúdos e meus professores revisam.”
Neste ano, a equipe do Astrominas tem se reunido de forma remota para planejar o próximo evento, que novamente será on-line e abrirá inscrições em maio, com ao menos 600 vagas. A preparação para o Menina Ciência 2021, que deve ocorrer entre setembro e outubro, também está em andamento. “Vamos ampliar o número de vagas, porque vimos que é possível dar conta da situação”, comenta Rodrigues.
Experiente na forma presencial, mas iniciante on-line, o projeto Pequenas Cientistas, do campus de Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) adiou sua quarta edição por causa da pandemia. O curso foi transferido de outubro de 2020 para maio deste ano, com atividades e palestras divididas em quatro sábados para 170 inscritas com idades entre 8 e 17 anos.
“Antes, recebíamos alunas de 10 a 14 anos. Mas como tanto o interesse das estudantes mais novas quanto o daquelas do ensino médio é grande, aproveitamos o modelo remoto para ampliar a faixa etária. Elas sempre nos escreviam pedindo para participar”, explica a física Maria José Fontana Gebara, da UFSCar, organizadora desta edição.
As alunas serão divididas em grupos etários e participarão de atividades simultâneas transmitidas pelo Google Meet. Serão duas horas pela manhã e duas à tarde, entre palestras e atividades práticas acompanhadas pelas 20 monitoras: alunas de graduação e pós-graduação da UFSCar e de outras universidades.
A opção pelos sábados partiu das próprias estudantes, que responderam a um questionário sobre o melhor dia para o curso. Elas também sinalizaram que gostariam de aprender mais sobre história da ciência, área que será abordada juntamente com física, química, biologia, matemática, nutrição, engenharia florestal, psicologia, computação, entre outras.
Inspiração
Em sua primeira edição, em novembro de 2017, o Pequenas Cientistas ainda era chamado de Meninas com Ciência – Edição São Paulo. Na ocasião, 50 estudantes passaram quatro sábados nos auditórios e laboratórios da UFSCar em Sorocaba.
“Recebemos o apoio, como parceria externa, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro [MN-UFRJ], criador do projeto original do Meninas com Ciência, que foi nossa inspiração. As organizadoras de lá participaram de nosso projeto e nos ajudaram com as dúvidas que tivemos”, conta a paleontóloga Mírian Pacheco, da UFSCar e organizadora da edição de 2017.
A segunda edição de São Paulo ocorreu em 2018 no Instituto Oceanográfico da USP e depois se tornou o Mergulho na Ciência USP, coordenado pela oceanógrafa Camila Negrão Signori. Na ocasião, Signori, a professora Diana Roque e Rodrigues aplicaram o teste Desenhe um cientista nas 50 estudantes participantes.
No início, 81,5% delas desenhavam mulheres e, depois de participarem de todas as atividades, esse número subiu para 90%. Os resultados da experiência foram publicados nos anais da conferência European Science Education Research Association (Esera), realizada em Bolonha, na Itália, em 2019. Naquele mesmo ano o projeto foi reconhecido pelo relatório do Programa HeforShe da Organização das Nações Unidas (ONU).
Com foco em meninas do 5º ao 9º ano do ensino fundamental, a terceira edição presencial do Mergulho na Ciência USP, que seria em 2020, também precisou ser cancelada por conta da pandemia. Em 2021, o curso terá sua primeira edição on-line, entre julho e agosto, com uma novidade.
“Pela primeira vez vamos aceitar a participação de meninos, que sempre nos procuraram. Manteremos todas as cientistas e a equipe formada por mulheres, para que eles vejam exemplos femininos na ciência”, conta Signori. Neste ano, todos que se inscreverem terão acesso ao curso, que será traduzido em libras.
Os interessados poderão se inscrever no site do Mergulho entre 1º e 15 de junho. Nesse mesmo período, estudantes de graduação e pós-graduação de todo o país poderão se inscrever para preencher as 30 vagas de monitoras do projeto – todas as inscritas também ganharão acesso ao curso.
O Meninas com Ciência, agora um projeto de extensão exclusivo do MN-UFRJ, também inspirou o Menina Ciência – Ciência Menina da UFABC e outras quatro iniciativas nas cidades de São Paulo, Campinas, Brasília e Belém, conforme detalhado em um artigo publicado em dezembro de 2020 na revista Anuário do Instituto de Geociências – UFRJ.
“As pesquisadoras interessadas nos escreveram e pediram instruções de como realizamos os nossos cursos”, conta a paleontóloga Luciana Witovisk, do MN, principal autora do artigo e uma das coordenadoras do projeto.
Até a pandemia, o curso tinha duas edições presenciais por ano – a primeira ocorreu no primeiro semestre de 2017. As seis edições reuniram, no total, 356 participantes de 11 a 15 anos, de escolas públicas e privadas. “Além de trazer as meninas para a ciência, buscamos atrair as famílias para o museu”, afirma Witovisk.
Ela conta que os pais das alunas, que as levavam para as oficinas, demonstravam interesse em entender mais sobre as atividades. Por isso, desde a quarta edição há uma programação só para eles, com palestras interativas com as cientistas da UFRJ.
O incêndio no MN, ocorrido em 2018, destruiu os equipamentos usados nas oficinas, como os detectores de metais que ajudam as alunas a procurar meteoritos. Aos poucos, esse material vem sendo reposto. A pandemia também interrompeu as atividades por lá.
O projeto tem organizado lives abertas ao público em suas redes sociais para continuar estimulando a participação das meninas na ciência, por meio de conversas com cientistas convidadas. “Tentamos mostrar que quem faz ciência é uma pessoa normal. Sou professora do museu, mas poderia ser uma tia ou a mãe delas. Só assim elas vão se enxergar lá dentro”, diz Witovisk.
“Participei do curso na primeira edição de 2019. Foi muito marcante porque, até então, eu não tinha pensado nas mulheres como cientistas. Depois indiquei para várias amigas da escola”, conta a estudante Alexia Andreza, de 14 anos.
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Permanência na ciência
Outro projeto de referência é o Meninas na Ciência, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele nasceu em 2013 como um dos 104 projetos contemplados em uma chamada pública do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) voltada para projetos que estimulassem meninas nas ciências exatas, engenharias e computação.
Hoje, é um programa de extensão que envolve oficinas de robótica, de ciência e gênero em escolas, leva meninas para visitar a universidade e realiza pesquisas sobre desigualdade de gênero, além de divulgar campanhas sobre o tema para a comunidade da UFRGS, como a #NaUFRGSTemNegras.
Como as atividades presenciais foram paralisadas em 2020, a equipe do projeto aproveitou o período para reunir em seu site o material das oficinas, disponível para outros projetos. Também publicaram o levantamento Ações de mulheres e meninas cientistas no Brasil, que mapeou projetos similares pelo país.
Em 2021, há planos de criar oficinas remotas para crianças e alunas do ensino médio. “Estamos estudando uma forma para que os professores da universidade possam abrir e apresentar seus laboratórios de forma virtual”, conta a física Carolina Brito, uma das coordenadoras do programa.
Ela destaca, ainda, que um dos objetivos do Meninas na Ciência é estimular que as mulheres permaneçam na carreira científica. Além das pesquisas e campanhas que visam questões de gênero no ambiente acadêmico, Brito foi contemplada – com a equipe do podcast Fronteiras da Ciência – em um edital de divulgação científica do Instituto Serrapilheira e lançou em março deste ano o podcast A saga de Carlota.
O podcast é baseado em uma peça de teatro criada por Brito e a também física da UFRGS Márcia Barbosa. “É a história de uma mulher que quer ser cientista e mostra todas as dificuldades do caminho. Os episódios narram sua história desde a infância, quando ela já demonstra o gosto pela matemática, mas não tem o apoio dos pais”, explica Brito.
Os projetos Menina Ciência – Ciência Menina e Astrominas também buscam estimular a continuidade das mulheres em suas carreiras nas áreas STEM, na figura de suas monitoras. “Como cientista, sentimos obrigação de dar um retorno para a sociedade. E projetos como esse nos motivam a continuar”, comenta a física Thayse Pacheco, que cursa doutorado em astronomia da USP e é monitora do Astrominas.
Já Raquel Assis, estudante de bacharelado em ciência e tecnologia da UFABC e monitora do Ciência Menina, lembra que sonhava ser cientista quando criança, mas foi deixando a ideia de lado. “Ainda na primeira edição, fui descobrindo o processo científico e o papel das mulheres. Eu tinha acabado de entrar na universidade”, lembra. “Agora, me inscrevi para a graduação em neurociência. Quero ser neurocientista.”
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Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP. Leia o original aqui.
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