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Pós-pandemia: especialistas projetam ensino superior do futuro

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Enquanto ainda digerem os primeiros efeitos práticos da pandemia, gestores de faculdades, centros universitários e universidades brasileiras ainda têm o desafio de projetar o futuro.

Quando o isolamento social acabar, a crise de saúde for superada e retomarmos nossas vidas profissionais: o que a pandemia do novo coronavírus deixará de aprendizagem para o ensino superior? E como estes aprendizados devem mudar o futuro do setor? O portal Desafios da Educação pediu para que especialistas em educação compartilhassem suas impressões sobre essas perguntas, a partir de cinco eixos:

  1. EAD e tecnologias educacionais;
  2. Ensino superior público;
  3. Crise financeira;
  4. Financiamento e pesquisa;
  5. Protagonismo docente e discente.

Leia mais: Um guia completo sobre os efeitos do coronavírus na educação

Os especialistas consultados são:

– Simon Schwartzman, cientista social e membro da Academia Brasileira de Ciências, foi presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre 1994 e 1998.

– Lilian Bacich, doutora em psicologia educacional, coordenadora de pós-graduação em metodologias ativas no Instituto Singularidades e líder pedagógica na Tríade Educacional. Ela é autora de Metodologias Ativas para uma Educação Inovadora: Uma Abordagem Teórico-Prática 

– Claudio de Moura Castro, economista, colunista da revista Veja e autor de livros  como “Educação Brasileira: Consertos e Remédios”, “Você sabe estudar?” e “As Trapalhadas da Educação Brasileira

Simon Schwartzman, Lilian Bacich e Claudio de Moura Castro. Crédito: Reprodução.

Simon Schwartzman, Lilian Bacich e Claudio de Moura Castro: especialistas debatem futuro do ensino superior. Crédito: Reprodução.

Expansão da EAD e das tecnologias educacionais

Lilian Bacich

“Há uma janela de oportunidades para as instituições manterem o uso de recursos digitais nas suas aulas, mas de uma maneira planejada. Vejo duas situações. Em primeiro lugar, aquelas que estão fazendo um bom trabalho na migração – muitas vezes porque já tinham cursos a distância – geram um potencial para os alunos entenderem as vantagens a ponto de migrarem para o EAD no futuro.

Outra situação são instituições e cursos que não tinham esse expertise e que não foram programados para serem a distância e simplesmente migraram para o ensino remoto por causa da pandemia. Nem podemos chamar de EAD. Nesse caso, pode haver, inclusive, desestímulo ao aluno, que acaba não entendendo como a modalidade funciona. Assim, não apenas o cenário não mudaria, como pioraria para a EAD.”

Leia mais: Ensino remoto emergencial não é EAD

Claudio de Moura Castro

“A crise está provocando um terremoto no P&D de tecnologias de educação a distância. A variedade de recursos será maior e muitas ideias que estavam amadurecendo vão entrar em cena. Talvez o exemplo mais dramático seja a inteligência artificial, pois ela vai permitir fazer em grande escala o que o EAD já faz em uma escala menor, que é a personalização do ensino.”

Enfim, haverá uma aceleração do uso de tecnologias educacionais: vamos desenvolvê-las, testá-las e melhorá-las.

Simon Schwartzman

“Já não tinha e, agora, não vai haver recursos para educar 6 a 7 milhões de pessoas com qualidade em cursos presenciais. Então, vamos ter que fazer alguma combinação para fazer ensino presencial onde for possível.

Ao mesmo tempo, criar possibilidades de ensino a distância para atender a uma população muito grande que não tem condições de se dedicar ao ensino presencial. Temos que pensar um sistema com formatos e instituições diferentes. E o sistema público vai precisar se adaptar a essa realidade.”

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Os desafios do ensino público

Lilian Bacich

“Mesmos nas universidades públicas, há professores que fazem a diferença do ponto de vista do uso de recursos tecnológicos. Mas as instituições privadas têm uma questão de mercado, de estar sempre tentando construir experiências mais interessantes para manter e captar mais alunos. Então, elas têm um movimento de mudança muito mais rápido.

No meu ponto de vista, a diferença tem a ver com a velocidade da mudança, que será muito maior nas instituições privadas do que será nas públicas.”

Claudio de Moura Castro

“O problema da universidade federal é um problema anterior ao coronavírus. É um problema sistêmico que vem de muito tempo. Elas estão de pés e mãos atadas pela burocracia pública. Elas são ingovernáveis porque o reitor não manda e há pouca autonomia financeira. Diante dessa herança, quando aparece o coronavírus, o reitor se vê encurralado se quiser fazer alguma coisa mais revolucionária.

Mas mesmo em universidades públicas, cursos com uma tradição maior de flexibilidade para responder ao mercado, como administração de empresas, provavelmente voltarão com menos força ao presencial. Acredito que esses cursos terão aprendido muita coisa para manter uma parte da carga horária a distância.”

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Simon Schwartzman

“Por razões econômicas, o setor privado já tinha avançado muito no EAD. Enquanto isso, o setor público se manteve no presencial. Como a transição entre as modalidades é complicada, o momento é de paralisia no ensino público.

Quando essas universidades se veem em uma situação de isolamento social, é uma novidade ter que introduzir novas tecnologias, novas maneiras de ensinar e de manter o contato a distância. Vai ser um retorno difícil e lento em que várias modificações podem ocorrer. Haverá um sistema público com muito mais restrições financeiras e que vai precisar se reinventar de alguma maneira. E, evidentemente, as novas tecnologias podem ajudar.”

Alunos em sala de aula; Coronavírus e o futuro do ensino superior. Crédito: Divulgação.

Alunos em sala de aula: outros tempos. Devido ao coronavírus, futuro do ensino superior será diferente. Crédito: Divulgação.

Impacto financeiro

Lilian Bacich

“Independentemente da situação, existe evasão no ensino superior. Mas o momento atual pode potencializar a evasão se as instituições não fizerem um trabalho bem feito. Ou seja, acho que agora há um estímulo para elas revisarem algumas posturas metodológicas, com o objetivo de buscar um engajamento maior dos alunos. É um ponto de reflexão: as IES precisam pensar se estão meramente entregando conteúdo ou estão pensando em um trabalho que tenha o viés das metodologias ativas, por exemplo. Vai haver um impacto econômico, mas elas podem se mexer para evitar uma evasão maior.”

Simon Schwartzman

“A consequência desse momento a longo prazo é uma crise econômica muito séria: o produto interno bruto (PIB) vai cair, o déficit público vai ficar gigantesco e o desemprego enorme.

As universidades vão ter que fazer um esforço muito grande para ver como se reinventam para poder continuar funcionando com menos recursos.

As universidades privadas já estão sendo afetadas. Elas dependem que as pessoas paguem suas mensalidades. E o grande subsídio ao ensino superior privado, que era o crédito educativo, já estava sendo cortado antes. E vai continuar sendo cortado. Talvez elas percam alunos e tenham que se enxugar. Mas elas têm a vantagem de serem mais flexíveis que as públicas para buscar alternativas devido ao seu caráter empresarial.

As públicas já estavam tendo dificuldades para conseguir financiamento e isso vai piorar a partir do ano que vem. Talvez elas tenham que usar um corpo docente em tempo integral mais enxuto, com mais professores contratados por outro regime de trabalho. E aí vem o problema que as universidades públicas não estão acostumadas a tomar a iniciativa.”

Leia mais: A guerra das mensalidades: entre a saúde financeira dos pais e das escolas

Financiamento e prestígio das áreas de pesquisa

Lilian Bacich

“Eu não tenho dúvida de que a pesquisa deve recuperar o seu prestígio, tendo em vista o papel que ela está exercendo, por exemplo, no teste de novas drogas e o quanto temos falado da importância da ciência nesse momento. Mas a ciência tem que se agarrar a isso para mostrar mais resultados para o público.”

Muitas vezes, as pesquisa ficam restritas às revistas especializadas e aos próprios pesquisadores, sem chegar com facilidade ao público leigo. Ou seja, também é um momento de aprendizado para a ciência melhorar a comunicação com a população.

Simon Schwartzman

“Com o susto que todos levaram, possivelmente a área de pesquisa em saúde vai ganhar importância. Mas o sistema de pesquisa em geral já vinha sofrendo e vai sofrer ainda mais devido ao corte de recursos. Ou seja, a pesquisa já estava debilitada e esse quadro vai se agravar. E vai ficar mais evidente de que não há recursos para manter todas as universidades realizando pesquisa.”

Claudio de Moura Castro

“A pesquisa em geral vai ser prejudicada devido a paralisação, mas a tendência é retomar. Devemos ter um aumento vertiginoso no P&D digital. Do ponto de vista emocional e subjetivo, a pesquisa é o assunto de todo mundo de uma forma que nunca foi. Então, desse ponto de vista, está todo mundo comendo nas mãos dos cientistas. O prestígio da ciência vai dar um salto em termos de valorização.”

Universidade de Boston: salas vazias indicam que ensino superior do futuro usará bem mais tecnologia. Crédito: divulgação.

O papel de docentes e alunos

Lilian Bacich

“Eu trabalho há pelo menos 10 anos com metodologias ativas e tecnologias da educação e sei a dificuldade que era para as instituições mostrarem para os professores o potencial desses recursos. Havia professores mais engajados, mas sempre houve aqueles com resistência para o digital.

De uma maneira muito abrupta, tivemos que quebrar essas resistências porque não havia outro caminho. Hoje, muitos professores foram de maneira forçada para o digital e, por fim, estão fazendo trabalhos incríveis utilizando recursos que fazem sentido para a prática docente.

Quanto aos alunos, acho que o momento que estamos passando vai mudar a postura tanto daqueles que frequentam cursos presenciais quanto daqueles que estudam a distância. Porque se as IES não apenas entregarem conteúdo no modelo remoto, mas conseguirem mostrar para os alunos que ele também podem participar da construção do conhecimento, que eles podem ter um papel mais ativo, eles vão levar isso para o futuro mesmo em uma graduação presencial.”

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Simon Schwartzman

“Para o EAD ser tão bom ou até melhor do que o presencial, o professor precisa ter apoio institucional, conteúdo de qualidade e boas tecnologias. O fundamental é haver investimento nesses pontos. Os alunos vão ter que aprender novas formas de trabalho, mas não vislumbro problemas de adaptação. Se você oferecer um bom material, boas oportunidades, eles vão se adaptar a isso mais do que os professores.

Se tem algum ponto positivo dessa crise é que, de repente, as tecnologias estão entrando no dia a dia de muita gente. Essa aprendizagem vai abrir a possibilidade de os alunos não precisarem se deslocar para as universidades, criando um sistema de ensino mais livre da localização geográfica.”

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