Simone Loureiro Brum Imperatore tem uma longa carreira na educação. É formada em Ciências Contábeis pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI). Em 2007, passou a integrar a equipe de professores da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), lecionando nos cursos de Ciências Contábeis, na modalidade da educação a distância (EAD).
Na época, intensificou seus estudos sobre extensão – assunto que segue como seu objeto de análise. É doutora em Diversidade Cultural e Inclusão Social, mestra em Desenvolvimento Regional, pós-graduada em cursos nas áreas de gestão e educação e bacharel em Pedagogia. Atua como professora universitária e consultora sênior na educação superior.
Em 2019, publicou o livro “Curricularização da Extensão: experiência da articulação extensão-pesquisa-ensino-extensão como potencializadora da produção e aplicação de conhecimentos em contextos reais”, resultado da sua tese de doutorado. Ela integra a União Latino-americana de Extensão Universitária (ULEU) e o Grupo de Pesquisa Extensión Critica do Clacso e é palestrante nacional e internacional.
Nessa entrevista, Imperatore fala sobre o momento da extensão no Brasil, os desafios e caminhos da sua curricularização, o impacto da pandemia na área e a necessidade de alinhamento entre a academia, comunidade e mercado de trabalho.
Confira a entrevista completa:
A educação brasileira está atrasada quando se trata de extensão?
A extensão é muito forte no resto da América Latina. O caráter de envolvimento da universidade com as comunidades – chamada de involucramiento – é muito maior na comparação com o Brasil. Especialmente, pela natureza majoritariamente pública das instituições de ensino.
No Brasil, é o contrário. As instituições privadas correspondem a 75% do total. Talvez seja por essa razão que a extensão nunca tenha sido vista como uma potência de valor, como acontece nos nossos vizinhos. Acredito que, nesse sentido, o Brasil está atrasado, sim.
Essas perspectivas diferentes também tem a ver com o tipo de organização administrativa. As faculdades são mais de 2,5 mil instituições de ensino que estavam legalmente obrigadas a ensinar – e não a fazer pesquisa e extensão. Os centros e as universidades, sim, sempre tiveram que trabalhar o tripe ensino, pesquisa e extensão.
Nesse universo, onde as faculdades são a maioria, obviamente teríamos mais ensino do que pesquisa e extensão. Essa é uma característica do Brasil.
Existe alguma ideia ou conceito que você mudaria ou acrescentaria no seu livro tendo em vista os impactos da pandemia?
No livro, trago que devemos inverter a ordem ensino, pesquisa e extensão. Devemos começar pela extensão, que apreende a realidade e a problematiza. Já a pesquisa busca respostas para essa problemática. E, dessa forma, surge o ensino, onde o aluno aprende. Esse é um currículo em ação.
Com isso, acontece a devolutiva social, quando a universidade e o aluno contribuem para a mudança e resolução de problemas da comunidade. Trata-se de uma ação pedagógica dentro de um contexto real.
Fizemos, no livro, uma opção metodológica pela pesquisa-ação. A pesquisa-ação é essa relação dialógica com as populações, emancipatória e construída por muitas mãos. Continuo acreditando nessa forma de trabalho na extensão, pois tem uma maior identidade com a sua proposta. Entretanto, a pandemia não possibilitou a execução dos projetos por esse caminho.
Foi necessária uma adaptação. Por isso, procuramos outras metodologias participativas, como a aprendizagem por projetos, a educomunicação, entre outras. Então, eu ampliaria o leque de possibilidades metodológicas e traria, para o meu livro, mais cases inspiradores, que se constroem no Brasil e dão sentido ao fazer extensionista.
A pandemia evidenciou uma série de desigualdades sociais. Como as universidades podem contribuir para debates sociais através da extensão?
De certa maneira, acredito que a pandemia tenha contribuído para a extensão. A aproximação com a finitude humana trouxe um nível maior de humanização. E, disso, veio a preocupação com o outro. Não tínhamos como nos proteger do coronavírus sem conscientização social.
Essa situação desnudou a necessidade do trabalho articulado, colaborativo, cooperativo, com uma riqueza de experiências e com diferentes linguagens. Até porque, por exemplo, um discurso médico erudito era inútil se não fosse inteligível para as pessoas. Era preciso um ethos educativo, em diferentes formatos.
Os nossos acadêmicos tiveram um aprendizado abrupto. Isso valorizou muito o trabalho realizado em campo. Inclusive, outros componentes curriculares utilizaram dessa estratégia. Os alunos desenvolveram trabalhos aprofundando sua autoaprendizagem através de ações próximas aos projetos de extensão.
Eu acredito que isso serviu de potencializador. Existem inúmeras formas de inovação. Uma delas é pensar metodologias de trabalho em diferentes realidades. Tivemos que labutar muito por nós mesmos. Ou seja, nos inserir no contexto sócio-histórico que vivíamos, na calamidade em que estávamos inseridos e na necessidade comum de sobrevivência. Com isso, se revelou um outro perfil de profissional cidadão.
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Por essa razão, pode-se dizer que o relacionamento da academia com a sociedade é o cerne da extensão?
Exatamente. E não apenas da extensão. Na verdade, a proposta de extensão que se tem hoje é a articulação desta com a pesquisa. Não há como dissociar uma da outra. E ainda deve estar dentro do currículo, ou seja, universalizada para todos os acadêmicos. A legislação ressalta que, a partir de 2023, é obrigatório que todos os cursos tenham 10% de suas cargas horárias destinadas a programas e projetos de extensão.
Antes disso, quem podia participar participava. As universidades não tinham uma preocupação em universalizar a extensão. Agora, elas serão obrigadas a fazer. Essa é uma questão extremamente relevante porque há um significado de aprendizagem diferenciada, uma metodologia ativa onde se aprende fazendo.
A extensão ganhou outra relevância. Ela dialoga mais com a pesquisa, não são mais dissociadas e todos estão aprendendo a fazer isso. Esse é um caminho permanentemente trabalhado. Mas algumas instituições estão tendo dificuldades de fazer.
Qual é a melhor forma para que os cursos implementem a curricularização da extensão? Eles devem aumentar a carga horária para encaixar os 10% no currículo?
Não se deve aumentar a carga horária. Inicialmente, temos que pensar em uma metodologia de trabalho. As instituições precisam olhar para a sua proposta pedagógica e refletir sobre ela. Também necessitam analisar suas regiões e entender quais as demandas que emergem dali, pois elas orientam o planejamento da atividade. Extensão é território.
A partir disso, as instituições conseguem estabelecer um diálogo entre os cursos e as situações-problema dos territórios. As universidades estão acostumadas a sentar e planejar seus projetos, sem conversar com a sociedade. Ao mesmo tempo, deve ser feita uma leitura do currículo para verificar onde os componentes existentes entram em entendimento com aquelas propostas. Pois alguns são naturalmente extensionistas.
A maior dificuldade que precisa ser enfrentada é ajudar o professor a compreender a metodologia por projetos. Ele tem que trabalhar ensinando o aluno a construir a aprendizagem, ajudando os grupos de estudantes a irem a campo, identificarem os problemas, levando-os para a sala de aula, discutir e colocar em prática a ação, entre outras atividades.
O processo avaliativo também precisa ser reformulado. Tem que ser analisado o nível de resolutividade das ações, dos aprendizados discentes, entre outros aspectos. Tudo o que for feito deve estar dentro de um contexto orgânico. É preciso pensar em que medidas essas ações contribuem para os objetivos do percurso de formação dos alunos.
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Os cursos EAD terão desafios muito diferentes do que os cursos presenciais?
Na proposta da Ulbra, trabalhamos os dois juntos. Nós não imaginamos que as duas modalidades andassem separadas. É um equívoco achar que o aluno do EAD deve estar no polo para realizar as atividades de extensão, assim como os do presencial não precisam ir para a sede da instituição.
Existe, por exemplo, um perfil de aluno que é trabalhador e viajante. Ele pode desenvolver a extensão no seu município de origem, orientado por professores, e também nos polos. Claro, trazendo tudo o que for necessário para que seja evidenciado que ele realmente fez esse percurso.
Temos que pensar que, para ele fazer a extensão em diferentes cidades, o polo tem que ter um termo cooperação com empresas, terceiro setor, entes governamentais, entre outros. Entretanto, o aluno não pode se sentir só nesse processo. Deve haver estratégias diferentes, tendo em mente a importância de se ter encontros síncronos e fóruns, explicando qual a metodologia dos projetos.
Também terá que ser disponibilizado materiais e conteúdos que o auxiliem na execução do projeto de extensão, além do processo avaliativo por meio de tecnologia.
É necessário pensar na aproximação com o mercado de trabalho e estimular a reconexão social. Mesmo que por muitas vezes seja preciso impor isso em sala de aula, posso dizer com certeza que o nível de satisfação dos estudantes é muito maior. A aprendizagem segue o mesmo caminho.
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A acadêmica tem dificuldades para se alinhar ao mercado de trabalho. Como a extensão pode ajudar nesse processo?
Em primeiro lugar, extensão não é estágio. Estágio continua sendo importante e deve existir. Agora, na extensão, não se pode fugir do perfil de formação nos delineamentos. Claro que não vou colocar um futuro engenheiro a dar aula de matemática em uma escola pública e afirmar que isso é um projeto de extensão. Para que a metodologia seja aplicada de forma eficaz, é importante seguir o ethos de trabalho daquele estudante.
O engenheiro pode desenvolver seu projeto em uma empresa, através de um diagnóstico, estudando normas técnicas e fazendo sugestões de melhorias. Tudo isso sob orientação do professor. Eles não estão desenvolvendo a profissão, até porque eles não podem enquanto não estiverem formados. Contudo, haverá uma proximidade.
Isso na prática profissional será muito importante. Normalmente, os estágios ocorrem mais para o final do curso. A extensão começa a trabalhar essas questões desde o início. Lembra que eu disse que se deve identificar os problemas para dialogar com a sociedade? Essa fase não pode ser pulada. Os empresários terão que trazer quais são as suas demandas. Dessa forma, o percurso curricular poderá ser construído focado nessa problemática.
Ensino, pesquisa e extensão são os pilares da educação superior. Como deve ser a articulação entre os três?
Isso pode ocorrer de várias formas. Não deveria haver divisão entre os três. E, sim, que se pensasse a educação como um processo de problematização da realidade, responsabilidade e compromisso na resolução de problemas da sociedade. O currículo deve estar em movimento.
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