As atuais transformações da sociedade desenham um horizonte de incertezas para o futuro do mercado de trabalho. Um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, estima que 65% das crianças irão trabalhar em empregos ainda não existentes hoje. O dado praticamente inviabiliza um planejamento de longo prazo ao setor de formação profissional. Como as instituições de ensino superior (IES) podem preparar alunos para profissões desconhecidas? A saída pode estar no entendimento da trabalhabilidade.
O conceito, surgido na virada do milênio, se refere ao desenvolvimento do potencial individual de geração de renda. Isso se dá a partir do aprimoramento de habilidades e competências específicas, convertidas em ativos e diferenciais a serviço do mercado.
“Mais do que tecnicamente qualificados, os profissionais da era da trabalhabilidade possuem pensamento crítico, resiliência, criatividade, sabem resolver problemas complexos e buscam aprendizado”, define José Janguiê Diniz, presidente do Grupo Ser Educacional e diretor presidente da Associação Brasileira das Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes).
Leia mais: Uma conversa sobre educação, trabalho e tecnologia
A trabalhabilidade aparece como uma alternativa à empregabilidade – uma noção atrelada à capacidade de o profissional conseguir boas colocações ao longo da carreira. Criada nos anos 1990, fruto das mudanças provocadas pela globalização, a empregabilidade tem a ver com o preparo necessário para uma pessoa assegurar um emprego formal e impulsionar um plano de crescimento perene.
O problema é que, cada vez mais, a estabilidade das relações de trabalho tem sido substituída pelo dinamismo. “Uma das principais tendências atuais é o colapso da escalada corporativa, na qual os funcionários fiéis se dedicam a galgar altos escalões nas organizações”, diz Peggy Velliotou, sócia da consultoria de gestão KPMG, em entrevista publicada no site da multinacional.
As novas gerações de profissionais dão menos valor à continuidade e procuram somar o maior número de experiências possível. Por isso, não costumam se vincular durante um longo tempo ao mesmo local de trabalho. Muitas empresas já entenderam isso e passaram a otimizar os vínculos, adotando uma estratégia de contratação por projetos.
“Nos últimos quatro anos, esse modelo cresceu bastante”, confirma Lucas Nogueira, diretor de recrutamento da consultoria de seleção Robert Half. “As organizações buscam profissionais especializados para uma força-tarefa determinada, que pode durar alguns meses ou até dois anos”.
A agilidade e o caráter maleável das relações, com privilégio à eficiência, são reflexos da instabilidade que caracteriza o mercado contemporâneo. Isso explica a ascensão de um posicionamento menos engessado entre as Gerações Y e Z.
Outros traços importantes desses profissionais são o caráter colaborativo e, acima de tudo, a necessidade de atuar em funções alinhadas aos seus sonhos e valores pessoais. Ambos os fatores também aparecem como pilares da trabalhabilidade.
Leia mais: Por que se fala tanto em competências para a educação?
Valor em primeiro lugar
Uma das características centrais do novo paradigma é a mudança de mindset. Os profissionais, de certa forma, passam a adotar o modelo mental das startups. Essas empresas identificam demandas consolidadas ou latentes e criam produtos e serviços inovadores para atendê-las. A chave da trabalhabilidade, portanto, é entender como transformar competências pessoais em soluções que interessem às empresas e ao público.
A partir daí, o profissional pode elaborar modelos de negócio variados – desde consultorias e palestras até uma nova empresa. Isso não significa tornar-se necessariamente um empresário ou mesmo abandonar o emprego convencional. Antes de tudo, o modelo coloca o profissional como protagonista e gestor de sua própria carreira, estimulando-o a estabelecer metas e identificar as ferramentas necessárias para alcançá-las.
Nesse cenário, é preciso entender a diferença entre emprego e trabalho. O primeiro é considerado uma etapa delimitada, cujo encerramento geralmente ocorre com a aposentadoria. Já o segundo representa uma abordagem com maior potencial de prolongamento, que pode acompanhar o indivíduo em paralelo ao longo da vida.
O valor de ambas as atividades, aliás, também é diferente. Isso porque a trabalhabilidade não se apoia apenas em questões de renda e sustento, mas nos principais interesses e gostos dos profissionais. As habilidades que devem ser aprofundadas para gerar as oportunidades de trabalho estão relacionadas a essas áreas.
A proposta de transformar hobbies em fontes de receita, por exemplo, está diretamente ligada ao conceito. Aqui, a trabalhabilidade funciona com um vetor para que as pessoas possam materializar seus propósitos de vida por meio da atuação profissional. Desse modo, o plano de direcionar habilidades para fazer a diferença na sociedade ganha um importante aliado.
Não à toa, muitos profissionais experientes têm buscado uma segunda ou terceira faculdade. A ideia é associar o cabedal de conhecimentos adquirido na carreira a competências capazes de ajudar o indivíduo a extrair o melhor desses recursos ou a direcioná-los a uma nova atividade. O movimento não deixa de ser um desafio para as IES.
“Se antes havia apenas o aluno experiente e o novo, agora os dois perfis se ampliaram, com os mais velhos em busca de informações tecnológicas e os mais novos precisando compensar a inexperiência”, afirma Mary Murashima, diretora de gestão acadêmica do Instituto de Desenvolvimento Educacional da Fundação Getulio Vargas (FGV- IDE), em entrevista ao jornal Valor Econômico.
Adaptação necessária
A consolidação da trabalhabilidade como nova ordem do mercado de trabalho vai exigir um redirecionamento por parte dos IES. Com a necessidade de adaptação e de combinação de conhecimentos, as grades curriculares convencionais correm o risco de se tornarem obsoletas. “As instituições podem contribuir modernizando os currículos com conteúdos de negócios que proporcionem conhecimentos multidisciplinares aos alunos”, sugere Diniz, da Ser Educacional.
Além disso, o ensino personalizado também tende a ganhar espaço. A criação de trilhas de aprendizado individualizadas se configuram num importante exercício de gestão de conhecimento, pois colocam o aluno como protagonista do processo educacional. Assim, a autonomia do método prepara o estudante não apenas para pilotar a sua própria carreira, mas também o ajuda a identificar pontos fortes e fracos. A melhoria dos níveis de trabalhabilidade vai depender da conscientização desses talentos e gaps. O mesmo vale para as metodologias ativas, com seu caráter colaborativo e de aplicação prática.
Leia mais: A importância das metodologias inovativas em cenários de incerteza
Por outro lado, o dinamismo exigido pelo mercado pode ser encarado como uma oportunidade para a criação de cursos rápidos, voltados à entrega útil e direta de conteúdo. E a própria docência pode se valer dessa nova orientação. Os professores, por já possuírem domínio da didática, tendem a encontrar maior facilidade para atuarem como consultores ou palestrantes, embarcando na onda da trabalhabilidade com um bom diferencial competitivo.
“Eles devem inovar em técnicas, métodos e didática de ensino. É preciso evoluir para acompanhar uma geração que busca, cada vez mais, o diferencial”, finaliza Diniz.
Confira a série Educação e trabalho
- A educação superior e o futuro do mercado de trabalho
- Como o mercado de trabalho reconfigura o ensino superior
- Trabalhabilidade: o novo rumo da formação profissional
- 10 profissões que ainda não existem – mas você precisa conhecer
- No ensino superior, empreendedorismo tem mais teoria do que prática
- Competências e personalização dão roupagem disruptiva à Unisinos
- 7 competências para o futuro do trabalho
- Conheça 4 futuras carreiras na educação
Comments