Por Maria Malta Campos
Recentemente, a imprensa paulista noticiou que muitas creches e pré-escolas particulares estão recusando ser chamadas de escolas, preferindo utilizar o nome de “centros de desenvolvimento infantil”, sugerindo que esses dois qualificativos são de alguma forma opostos.
Assim, uma relação aparentemente óbvia — um dos principais objetivos da educação infantil seria promover o desenvolvimento infantil, apoiando as famílias e a sociedade na missão de acolher e educar as novas gerações de cidadãos — parece não ser assim tão simples e evidente por si mesma para alguns educadores e familiares de crianças pequenas.
Como todos os conceitos e formulações que circulam nas diferentes culturas e nos diferentes tempos históricos, desenvolvimento humano e educação assumem significados distintos conforme são apropriados por determinados grupos sociais e começam a fazer parte de algumas pautas e projetos em disputa na sociedade.
Recentemente, no Brasil, vivemos um momento em que esses dois conceitos assumem significados ambíguos e até contraditórios no debate sobre políticas e programas educacionais dirigidos às crianças pequenas.
De um lado, a creche ainda parece guardar alguns estigmas do passado, identificada como instituição de caráter assistencial, para crianças de famílias pobres que não contam com outra opção para deixar seus filhos pequenos enquanto trabalham para sobreviver. Para se diferenciar dos mais pobres, algumas famílias de classe média preferem matricular seus filhos em instituições que adotam nomes diferentes de “creche”.
Mais recentemente, parece que esse mercado já não valoriza muito os títulos romantizados tradicionais (“Cantinho da vovó”, “Quintal das artes”…) e começa a adotar nomes com uma conotação mais científica, como “centro de desenvolvimento infantil”.
No outro polo, o foco no desenvolvimento infantil presente na formulação das novas propostas para a pequena infância, reforçadas pela aprovação no Congresso de seu marco legal, tem causado algum alarme na defesa da educação infantil como política educacional inserida na educação básica, segundo a definição da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996.
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Ancorados numa velha desconfiança que a área educacional conserva a respeito do lugar que a psicologia deve ocupar nos fundamentos da prática educativa, alguns posicionamentos acabam por minimizar a importância do conhecimento sobre o desenvolvimento infantil na formação de professores e nos currículos para a educação das crianças pequenas.
Mas será que essas desconfianças se sustentam, quando examinadas de perto? Se a resposta for afirmativa, em que aspectos?
Algumas origens do debate
De forma bastante esquemática, é possível identificar alguns antecedentes desses embates, que permanecem muitas vezes na sombra, alimentando questionamentos e resistências aqui e ali.
A psicologia, especialmente a psicologia do desenvolvimento, esteve presente em duas vertentes de pensamento que incidiram sobre a educação: as teorias sobre o apego, que se basearam em observações sobre o desenvolvimento de bebês e crianças pequenas em orfanatos e abrigos, sem vínculos afetivos com adultos significativos — tanto no passado como mais recentemente, em países do leste da Europa — e a tradição das “classes especiais” nas escolas primárias, onde eram agrupadas crianças que de alguma forma não se ajustavam aos padrões esperados, encaminhadas principalmente por psicólogos escolares, que nelas identificavam algum tipo de deficiência de aprendizagem.
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As pesquisas sobre o apego motivaram e ainda motivam uma desconfiança muito grande sobre a creche, equiparada aos orfanatos do passado. A noção da creche como “um mal menor”, para crianças que de outra forma estariam “abandonadas” ou “jogadas na rua”, ainda persiste na sociedade, acompanhada da imagem da família pobre como incapaz de educar seus filhos.
Os movimentos feministas, que trouxeram a reivindicação por creches como condição para uma participação igualitária das mulheres na sociedade, recuperando a imagem dessa instituição na perspectiva dos direitos das mulheres, das famílias e das crianças, bateram de frente contra essa noção assistencial da creche como um “mal menor”.
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Porém, numa sociedade desigual como a nossa, a creche ainda conserva essa imagem, permeando programas de baixa qualidade em muitas redes municipais.
De outra parte, o movimento de rejeição às “classes especiais” nas escolas, com base em pesquisas que denunciavam suas consequências negativas sobre as crianças ali segregadas, motivou uma desconfiança sobre a presença de psicólogos nas equipes escolares e incentivou o movimento e as políticas que hoje chamamos de “inclusão”.
As diversas vertentes no debate
Os currículos adotados nas redes e instituições de educação infantil sofreram várias influências ao longo do tempo e conforme o grupo da população atendida. Nessa história também se encontra o momento em que a concepção de educação compensatória prosperou e posteriormente foi duramente criticada, principalmente pela sociologia da educação.
No Brasil, nas décadas de 1960 a 1980, surgiram muitos programas para crianças em idade pré-escolar baseados na crença de que as características das crianças e das famílias pobres eram a causa do posterior fracasso escolar. Assim, esses programas tinham como objetivo compensar essas carências antes das crianças ingressarem na escola primária.
A sociologia da educação, principalmente baseada nas teorias da reprodução, redirecionou o foco para os processos de exclusão no interior da escola, em vez de privilegiar explicações exclusivamente centradas nos grupos sociais discriminados.
As teorias da reprodução apontam para o papel da escola na justificação da desigualdade social, explicada em função do fracasso ou sucesso escolar de alunos de diferentes classes sociais, sem levar em conta que, segundo essa interpretação, a cultura escolar baseia-se na cultura da classe social dominante.
Mais recentemente, o foco na diversidade cultural fortaleceu a visão da criança como um ser social e a valorização das chamadas culturas infantis. A antropologia passou a se interessar pelas crianças pequenas nas sociedades modernas, e pesquisadores, como o antropólogo William Corsaro, elegeram os grupos infantis como objetos de investigação dentro desse tema.
Corsaro realizou pesquisas sobre as interações de grupos de crianças da pré-escola e dos primeiros anos do ensino fundamental, durante os períodos de recreio e brincadeiras livres, nos Estados Unidos e na Itália.
A imagem da criança como “produtora de cultura” vem sendo afirmada e, de certa forma, desloca para segundo plano o conhecimento sobre o desenvolvimento infantil, que na sociedade humana ocorre sempre moldado por interações entre a criança e o ambiente cultural e social em que esta está inserida, até mesmo antes de seu nascimento.
Esses deslocamentos de sentido têm uma repercussão importante nas concepções que orientam tanto os programas adotados por creches e pré-escolas quanto as práticas dos adultos que nelas trabalham.
O cotidiano das creches
Hoje contamos com um acervo importante de pesquisas baseadas em observações sobre o que ocorre no dia a dia de creches e pré-escolas pelo país afora.
Principalmente no caso das creches, esses retratos não fornecem um quadro muito animador sobre a qualidade do trabalho realizado com as crianças pequenas, mesmo quando as professoras têm diplomas de ensino superior e o número de adultos que nelas trabalham é adequado em comparação com o número de crianças atendidas.
Do ponto de vista da organização do espaço, o modelo escolar, de salas separadas para grupos formados pela idade das crianças, é o padrão dominante. Porém, quando se observam as rotinas adotadas nas longas horas que as crianças ali permanecem, o modelo assistencial — banho, comida, sono, espera — predomina.
A partir desse formato básico, as atitudes e os comportamentos dos adultos geralmente descritos nessas pesquisas indicam: falta de participação junto às crianças nos poucos momentos de brincadeiras livres; poucas oportunidades de enriquecimento de atividades que levem à ampliação dos interesses das crianças; alheamento nos momentos de cuidados com a alimentação e a higiene dos pequenos; ausência de interações com as crianças individualmente; desatenção com manifestações de desconforto ou estresse por parte das crianças, entre muitas outras situações.
Donatella Savio chama atenção para atitudes semelhantes ao comentar o “cuidado sem cuidado” (Savio, 2014). No entanto, contraditoriamente, essas mesmas pesquisas revelam que o discurso das educadoras já incorporou muitas formulações atuais da pedagogia da infância: o protagonismo da criança, a importância das brincadeiras e das culturas infantis, a integração cuidado-educação…
Como explicar tudo isso? Se fosse possível realizar, tentativamente, um tipo de arqueologia das concepções que se encontram por trás de muitas dessas rotinas e práticas observadas, é provável que se encontrasse um conjunto de ideias pedagógicas de diversas épocas, formando um amálgama incoerente e não muito consciente de motivações que orientam o currículo real, a despeito de discursos que reproduzem posições veiculadas nos cursos de formação e nos documentos oficiais.
A questão mais preocupante, no entanto, é que essa realidade confronta muito do que já se pesquisou sobre o desenvolvimento humano nos primeiros anos de vida.
Desenvolvimento e pedagogia da infância
É interessante pensar que, há algumas décadas, essa questão seria considerada banal: o estudo de autores como Piaget, Vygotsky, Wallon e Bruner, para citar apenas alguns, era parte integrante dos cursos de formação de professores e fundamentou programas e currículos para a educação básica.
Mais recentemente, as neurociências trouxeram novos aportes ao conhecimento sobre o desenvolvimento cognitivo e emocional nas diferentes fases do desenvolvimento humano, especialmente na pequena infância, mas também na adolescência e na juventude.
Esses conhecimentos não se chocam com as pesquisas sobre as culturas da infância, nem com aquelas sobre os fundamentos das pedagogias que valorizam as brincadeiras e interações na educação infantil.
Pelo contrário, reafirmam a importância das experiências e interações para o desenvolvimento humano em todas as suas dimensões, avançando hipóteses sobre algumas fases consideradas mais sensíveis para o amadurecimento de funções mentais ligadas a aspectos de aprendizagens relevantes para a vida humana (NCPI, 2014).
Como alguns autores têm apontado, as contribuições dessas novas pesquisas têm por vezes sido interpretadas de forma equivocada, alimentando certos mitos e modismos que não se sustentam frente ao alcance das descobertas, muitas das quais ainda se caracterizam como hipóteses que precisam ser confirmadas (ou rejeitadas) por novas pesquisas (Hai, 2018).
Entretanto, é preocupante constatar que os programas que orientam de fato a organização e o trabalho pedagógico em muitas creches e pré-escolas brasileiras continuam a ignorar o intenso debate que essas pesquisas têm provocado sobre os currículos e os métodos pedagógicos em muitos países (OCDE, 2002 apud Hai, 2018).
A educação é um campo que necessita ter seus fundamentos alimentados por outras ciências: a história, a sociologia, a antropologia, a psicologia, a filosofia, a psicanálise e a biologia sempre tiveram seu papel na formulação de propostas pedagógicas em diversas épocas. Froebel, Montessori, Freinet, Steiner, Malaguzzi e tantos outros sempre fundamentaram suas propostas nos conhecimentos que tinham sobre as características das crianças com as quais desejavam trabalhar, marcados pelas inquietações e projetos de sociedade de seus tempos e lugares.
No trabalho com as crianças pequenas em ambientes coletivos, o conhecimento sobre o desenvolvimento infantil é fundamental, não para classificar ou para ser utilizado sem as necessárias mediações culturais, éticas e sociais, mas como suporte aos educadores para propor às crianças experiências que ampliem seus interesses, suas curiosidades e possam alimentar seu enorme potencial como sujeitos em desenvolvimento.
Por tudo isso, creches, pré-escolas e centros de educação infantil são, ou deveriam ser, instituições que, entre outras finalidades, contribuem efetivamente para o desenvolvimento infantil.
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Artigo originalmente publicado na Revista Pátio Educação Infantil nº 56, julho-setembro de 2018.
Sobre a autora
Maria Malta Campos é pedagoga, doutora em Ciências Sociais, pesquisadora sênior do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas e professora aposentada do Programa de Pós-graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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