Por Luciano Sathler
O Banco Mundial divulgou recentemente o Relatório de Desenvolvimento Mundial, publicação anual em que aborda temas relevantes do presente que afetam o futuro da sustentabilidade socioeconômica e ambiental das nações.
O tema da edição de 2019 é a mudança da natureza do trabalho. Envolve os impactos dos novos modelos de negócios propiciados pela tecnologia, a automação, bem como as respostas inclusivas que os governos e a sociedade civil precisam trabalhar a fim de preparar as pessoas para uma nova realidade.
Aqui, trazemos uma leitura dos trechos iniciais do Relatório de Desenvolvimento Mundial 2019, especialmente na sua base conceitual, que relaciona automação e inovação com a geração ou extinção de empregos.
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É mais fácil avaliar como a tecnologia molda a demanda por competências, e gera transformações nos processos de produção, do que estimar seu efeito sobre as perdas de vagas para trabalhadores.
Há uma mudança nas competências mais bem recompensadas no mundo de trabalho. O prêmio é maior para as que não podem ser substituídas por robôs – competências cognitivas, como o pensamento crítico, e competências socioemocionais, como a gestão e a empatia que melhora o trabalho em equipe.
Trabalhadores com essas competências de maior complexidade são mais adaptáveis aos novos tempos. A disrupção dos processos desafia as fronteiras tradicionais das empresas, ao expandir cadeias globais de valor e alterar a geografia dos empregos.
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Tecnologia e competências
A tecnologia tem alterado a forma como as pessoas trabalham – é crescente o número de organizações que mantêm contratos com profissionais independentes para compromissos de curto prazo. Nesse contexto, a precarização das relações de trabalho é especialmente agravada em um país como o Brasil, historicamente marcado pelo fosso da desigualdade de renda e de oportunidades.
A tecnologia aumentou a demanda por competências cognitivas e socioemocionais, tanto nas economias mais ricas quanto nas empobrecidas. As habilidades rotineiras, por outro lado, entraram em declínio.
É interessante notar, contudo, que a remuneração para combinações de diferentes tipos de competências parece aumentar. Essas alterações ocorrem não só por meio de novos empregos, que substituem trabalhos antigos, mas também pela mudança do perfil de competências em trabalhos existentes.
Algumas características da atual onda de progresso tecnológico são notáveis. As tecnologias digitais permitem que empresas surjam, expandam-se, diminuam ou desapareçam muito mais rapidamente, tornando difusos os limites dos negócios e da concorrência, além de desafiarem os padrões tradicionais de produção. Novos modelos de negócios – empresas de plataforma digital – evoluem de startups locais para se tornarem gigantes globais, muitas vezes com poucos funcionários e pequenos ativos tangíveis.
A capacidade fiscal para arrecadação dos governos é reduzida pela natureza virtual dos ativos produtivos. A ascensão dos mercados de plataforma permite que os efeitos da tecnologia alcancem mais pessoas mais rapidamente do que nunca. Indivíduos e empresas precisam apenas de uma conexão de banda larga para negociar bens e serviços online. Essa “escala sem massa” traz oportunidade econômica para milhões de pessoas que não vivem em países industrializados ou mesmo em áreas industriais.
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A mudança dos tipos de competências e habilidades demandadas atinge essas mesmas pessoas. A automação eleva a remuneração sobre competências cognitivas de alta ordem em países avançados e economias emergentes. Investir no capital humano é a prioridade para aproveitar ao máximo essa evolução de oportunidade econômica.
As tecnologias digitais permitem que as empresas se automatizem, ao substituir o trabalho humano por máquinas. Ao mesmo tempo ampliar as oportunidades para inovar, pois expandem o número de trabalhos, serviços e produtos. O futuro do trabalho será determinado pela batalha entre automação e inovação – veja a figura mais abaixo. Em resposta à automação, declina o emprego em setores antigos. Já com a inovação, surgem novos setores e novos trabalhos.
Capital humano
Na maior parte dos últimos 40 anos, o capital humano tem servido como um escudo contra a automação, em parte porque as máquinas eram menos aptas para replicar tarefas mais complexas. Trabalhos com necessidades de baixa ou média competências foram mais afetados pela mudança tecnológica, por serem mais suscetíveis à automação ou pela menor complementaridade com a tecnologia.
O resultado é que a automação tem reduzido drasticamente a demanda por trabalhadores menos qualificados e a inovação tem favorecido os que têm acesso a mais educação de melhor qualidade – formal ou não-formal. Uma grande questão é se os trabalhadores deslocados pela automação terão competências necessárias para ocuparem os novos empregos criados pela inovação.
Como dito, três tipos de competências são cada vez mais importantes no mundo do trabalho:
- competências cognitivas avançadas, como resolução complexa de problemas;
- competências socioemocionais, como exigidas para o trabalho em equipe;
- e combinações de competências que são preditivas de adaptabilidade, como raciocínio crítico, resiliência e autoeficácia.
Desenvolver essas competências requer fortes fundamentos do capital humano e aprendizagem ao longo da vida, a começar pelos cuidados na primeira infância.
No entanto, os governos nos países mais empobrecidos não priorizam adequadamente o desenvolvimento na primeira infância e os resultados do capital humano entregues pela educação básica estão muito aquém do ideal – como no Brasil. A educação superior acaba por refletir a falta de priorização, direcionamento e financiamento adequados a diferentes perfis institucionais e dissociados da realidade local.
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A criação de empregos formais é o melhor caminho, consistente com a agenda decente da Organização Mundial do Trabalho, para aproveitar as oportunidades da mudança tecnológica. Nos países empobrecidos, a maioria dos trabalhadores permanece nos empregos de baixa produtividade, muitas vezes no setor informal, com pouco acesso à tecnologia.
Falta de empregos de qualidade no setor privado deixa talentosos jovens com poucos caminhos para o emprego assalariado, assim como um ambiente inóspito ao empreendedorismo desestimula a juventude – uma triste realidade também junto a egressos da educação superior, inclusive da pós-graduação.
Quanto à educação continuada, ampliar e melhorar as oportunidades de aprendizagem dos adultos é uma necessidade para permitir aos que deixaram a escola que se alinhem de acordo com as mudanças das demandas do mundo do trabalho.
Para as sociedades se beneficiarem do potencial que a tecnologia oferece, elas precisarão de um novo contrato social centrado em maiores e mais bem direcionados investimentos na educação de qualidade, que garantam mais chances de inclusão da população e, progressivamente, a proteção social universal.
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Sobre o autor
Luciano Sathler é PhD em Administração pela FEA/USP, reitor do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix e diretor da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed), além de curador do site Inovação Educacional.
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