Por Maria Teresa Eglér Mantoan
A ideia de hospitalidade na educação nos faz reconceituar o papel do aluno e do professor e coloca em xeque a instituição escolar como um todo.
Muitos me conhecem pela defesa intransigente que faço do direito de todos à educação. Do direito à hospitalidade absoluta, essa acolhida que ultrapassa – os direitos e que se apega a eles para manter-se ainda mais forte.
Não vejo essa defesa como uma notável, impertinente e temida bandeira educacional, como muitos apregoam. Vejo-a como a consequência de um entendimento básico do que compete à escola na educação das gerações: ser responsável por ensinar indistintamente a todos os que chegam, preparando-os para a vida pública.
A recepção incondicional aos alunos é, pois, a marca, o propósito primeiro das escolas — uma divisa que vale para todos em todos os níveis de escolaridade.
O direito à hospitalidade incondicional traz à tona as falsas categorias que inventamos para confinar pessoas a uma identidade fixada e estabelecida de aluno, em razão de um ou outro atributo escolhido, firmado, estabelecido.
A capacidade multiplicativa da diferença de cada um de nós, o devir, o tornar-se alguém desmistificam a diversidade, a pluralidade, que celebram o politicamente correto, aceitando, tolerando os diferentes, aqueles negativamente valorados pela diferença entre uns e outros e a diferença de uns sobre os outros. A diferença nada tem a ver com o diferente, como pensa a maioria.
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Tal como a hospitalidade, a diferença é ilimitada e, portanto, não pode ser contida em conceitos, grupos e quaisquer representações. Para mudar os rumos da educação, o primeiro passo, na minha convicção, é dar as boas-vindas a todos os que chegam à escola. A todos os aspirantes à vida pública, aos que a buscam para aprender a ser e a viver como cidadãos.
Em uma palavra, a hospitalidade incondicional coloca em xeque a instituição escolar como um todo e é um instrumento de análise de como essa instituição atua, face a seus compromissos de promoção do avanço civilizatório.
Receber, conviver em um mesmo ambiente com as diferenças de cada um de nós é estar certo de que haverá conflitos, disrupções, ameaças a serem ultrapassadas, pois faz parte da hospedagem os estranhamentos locais, os reconhecimentos, a conquista da harmonia possível nos relacionamentos.
A permanência do aluno em qualquer escola ou curso, sejam quais forem os seus níveis, não é questão de favoritismos, mas de direitos conquistados e consagrados neste país. Trata-se de uma situação que é garantida a todos nós e que tem de ser assegurada a todo custo pelo respeito ao aluno como ser emancipado. E sob essa ótica há de ser vista, para evitar, para não sujeitar o aluno ao conformismo e à tirania do saber educativo.
Hospitalidade e participação na escola
A garantia do acesso e da permanência se fecha na participação de todos no processo educativo. Não é o bastante chegar, entrar e ter garantido um lugar na escola, mas dela participar, segundo suas capacidades, interesses, contribuições.
Um professor que não reprime, que não impõe um único roteiro e ponto de chegada ao aluno é o esperado do ensino para que não haja reprodução, repetição pura e simples de um sentido predefinido do conhecimento, mas sim uma livre reinterpretação do signo emitido.
Infelizmente, em grande parte das vezes, deparamo-nos com um professor explicador, cujo ensino desconsidera a bagagem do aluno e tira deste a oportunidade de aprender, traçando suas próprias estradas do conhecimento. Ao contrário do que se pensa, o professor explicador não é um facilitador da aprendizagem. A facilitação é uma forma sutil de infundir o autoritarismo nas aulas, violando a emancipação intelectual do aluno.
Quando o ensinar se reduz a informar, o saber é simplificado, limitado, determinado, universalizado. Transmitir o que sabemos não é uma simples questão de comunicação e não constitui uma narrativa objetiva, dado que a racionalidade que a sustém jamais será neutra.
O ensino hospitaleiro outorga lugares ao aluno e ao professor nos quais ambos se sentem recriadores de conhecimentos, de respostas e soluções que os empoderam como investigadores. A relação entre ambos, então, se horizontaliza, e é nessa posição que conseguem ir além do que já sabem. Na hospedagem incondicional, o aluno é recebido pelo professor com toda a sua bagagem; esta faz parte do hóspede que chega.
Aprender a ensinar na hospitalidade
O que seria necessário (des)aprender para ensinar na hospitalidade, condição para que haja a participação de todos na construção do conhecimento nas escolas? Sabemos que tudo o que é pode ser uma outra coisa. E que, para ser essa outra coisa, precisamos nos sentir cativados, atraídos, seduzidos, capturados por ela.
No geral, os professores buscam métodos ditos consagrados para ensinar e desconhecem que os alunos têm os seus próprios, para aprender. Isso é inegável, embora poucas vezes nos demos conta. O professor afetado pelo que trata/ensina, ao comunicar-se com os alunos, embora se prepare, estude o assunto, sempre terá o que aprender.
Ressignificar o ato de ensinar abre portas para que o aluno reconheça a importância de sua busca e de sua competência pessoais para criar e emitir signos. O aluno precisa se perceber como alguém que cria e emite signos, ou seja, como alguém que também ensina!
O ensinar na concepção da hospitalidade produz a trama necessária entre os envolvidos no ato de conhecer; aluno e professor se misturam e se tornam partes interessadas de uma mesma busca. Tal mudança, tão necessária no ensino que temos hoje, não exige grandes preparações, formações, como é esperado. Requer, contudo, que estas sejam legítimas, convictas e despidas de interesses e inseguranças de ambas as partes — do professor e do aluno.
O ensino pela explicação é uma outra forma manifesta e ao mesmo tempo velada de autoritarismo, de ascensão, de força, de aniquilamento do aluno. O fato de se conceber o professor como alguém que sempre entende (ou deve entender) mais e melhor de um certo tema se alastra dentro e fora da escola. É essa figura do explicador que tanto nos tem marcado como profissionais. Aquele que chega para aprender tem de se sentir diante de quem o hospeda como um ser livre e privilegiado pelo acolhimento.
A explicação estrita, inconteste, que é essa pecha que nos marca, subsiste nas escolas, porque ainda há muitos de nós que consideram o aluno um ser incapaz da compreensão desejada e definida pela escola, impressa no currículo, nos livros adotados. Daí a grande dificuldade que os professores têm de receber alunos que já vêm identificados pela dificuldade de aprender.
O aprender na igualdade das inteligências, o aprender como experimentação e a liberdade de criação como condição da construção do conhecimento são pouco difundidos nos cursos de nível superior de formação de professores, nas reuniões pedagógicas das escolas, nas leituras tradicionais oferecidas aos professores. Decerto provocarão os que descartam as inovações, mas que têm muito a dizer a todos os que entenderam o sentido transformador do trabalho educacional em escolas hospitaleiras.
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Sobre o aprender e sua avaliação
A igualdade das inteligências nos faz reconhecer o que está ainda muito velado aos professores em geral: a aprendizagem cabe exclusivamente ao aprendente, muito embora nem ele mesmo saiba quando e como aprende. Talvez ele apenas sinta quando algo lhe toca, lhe perturba, e às vezes isso só ocorre posteriormente. O tempo do aprender é, portanto, subjetivo e reúne o presente, o passado e o futuro.
Em consequência, o aprender não se dá na linearidade dos anos e das séries escolares, na forma objetiva e prática sugerida pela organização curricular. Não há condições e/ou sentido de prever, controlar, conduzir e, portanto, de mensurar qualquer aprendizagem, quando reconhecida como ato pessoal, que se multiplica e se diferencia, conforme se efetiva.
Esclarecendo ainda mais, a intenção de ensinar não garante e não deve conter a garantia e a condição do aprender.
O professor, é claro, investe, quer ensinar, mas o aluno pode não aprender nada. Vêm daí as frustações, a angústia do professor e o seu insuportável sentimento de incapacidade e a busca de uma saída para explicar seu insucesso.
Há que se encontrar uma saída reconfortante e nada mais fácil do que responsabilizar o aluno por esse fracasso, atribuindo-lhe todas as deficiências, incapacidades, desigualdades para dar conta do ensinado. Tudo acontece em consequência do que é conhecido como fracasso escolar. Fracasso da escola e não do aluno.
Aprender e ensinar não envolvem exclusões, comparações e hierarquização de níveis de conhecimento. Então, como mensurar, avaliar o processo escolar de um aluno na ótica de uma escola hospitaleira? Como compatibilizar a formalidade do ensino apregoado pela escola conservadora com a informalidade da aprendizagem?
Nada mais indicado, na linha de mudanças propostas pela hospitalidade incondicional nas escolas, do que livrar os alunos da condenação de serem avaliados como usualmente se procede. O processo de avaliação é injusto e inapropriado ao que significam o ensinar e o aprender, na ótica que aqui defendo. Incide inteiramente sobre o que o aluno aprendeu, segundo uma média esperada e definida.
Os nomes atribuídos à avaliação podem variar para ocultar o seu sentido intrínseco, mas na base de toda avaliação está sempre a necessidade de medir, para agrupar, selecionar, subordinar, apurar, escolher alguns e excluir outros. A avaliação de conhecimentos se confunde com a avaliação do aluno como um todo.
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Quem teria o poder de avaliar o que foi aprendido a não ser o próprio sujeito da aprendizagem? Extrapolamos e agigantamos nossas funções quando nos imiscuímos no exame, na avaliação do aprender, mas nos esquecemos de avaliar como ensinamos. De fato, avaliar, reconhecer o certo ou o errado só tem sentido quando o requerido é um conhecimento fechado, predefinido, exato e determinado por outrem.
O hospedeiro solicita a avaliação de quem se hospeda a respeito do atendimento recebido para que possa conhecer a hospedagem oferecida: seus pontos altos e baixos, o que precisa mudar, aperfeiçoar…
Os índices serão tão mais elevados quanto maior for a acolhida do hospedeiro ao que o hóspede necessita, espera desse tempo em que viveram juntos e se conheceram, usufruíram da hospedagem. O processo avaliativo é, pois, compartilhado e relevante a tal ponto que pode mudar o modo de hospedar, os conceitos, índices de desenvolvimento das escolas e dos sistemas de ensino.
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Sobre o aluno peregrino e sua escola
O aluno é o peregrino, e faz parte do seu caminho a escolha de rumos dessemelhantes, que lhe parecem mais convenientes e que ampliam as possibilidades de caminhar dos que lhe vierem atrás.
A ideia de hospitalidade na educação nos faz reconceituar o papel do aluno, do professor, nas formas inusitadas em que se engendram, numa mesma aula, o ensinar e o aprender, provocados que somos pelas perturbações que conseguimos distinguir no confronto das nossas diferenças.
Alunos e professores, estamos juntos na mesma sala, numa mesma escola, mas cada um as habita a seu modo, convive com o conhecimento de acordo com seu tempo, interesse, forma de abordá-lo.
Entre a escola para alguns, concebida na ideia da hospitalidade condicional, e uma escola absolutamente hospitaleira existem séculos em que a educação brasileira se acomodou, dedicando-se aos privilegiados, aos que conseguiam reproduzir padrões identitários preestabelecidos e convenientes. Havia poucos alunos nas escolas…
A educação hospitaleira é uma aspiração e uma difícil tarefa para todos nós. Nada, contudo, é tão difícil que a nossa vontade não dê conta. Mudar a escola conforme a expus, aqui, hoje, é o projeto a que me que dedico para transformar as escolas brasileiras. Convido-os a participar dele. Ninguém pode ou deve se considerar expert na arte do ensinar hospitaleiro. A cada hóspede, um atendimento.
Artigo originalmente publicado na revista Pátio Ensino Fundamental nº 87, agosto-outubro 2018.
Sobre a autora
Maria Teresa Eglér Mantoan é doutora em Educação e professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: tmantoan@gmail.com.
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