Ensino Básico

Desmonte do PNLL dificulta acesso à literatura na escola

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Instituto de Leitura Quindim, em Caxias do Sul (RS): apenas 45% das escolas públicas brasileiras têm biblioteca ou sala de leitura. Crédito: Patrícia Tavares/divulgação.

Na abertura do livro O que é literatura infantil, Ligia Cademartori afirma que “a importância de aproximar as crianças dos livros é hoje praticamente um consenso”. A publicação é de 1986.

Na época, a autora reconhecia os esforços públicos em levar cada vez mais livros de ficção às escolas, o que fortaleceu o laço entre a educação e a literatura na infância.

Mais de 30 anos depois, o impacto positivo da literatura infantil na alfabetização e no desenvolvimento cognitivo e social das crianças precisa ser reforçado. O processo atual de desmonte das políticas públicas de compra de livros e de incentivo à leitura no Brasil é classificado por especialistas ouvidos pelo portal Desafios da Educação como uma “catástrofe” e uma “tragédia”.

Leia mais: O desprestígio da leitura e suas consequências

Desmonte do PNLL

O Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), uma das principais políticas públicas do setor, teve o último edital executado em 2014. Para se ter ideia do que isso representa, desde o ano 2000 até ser descontinuado, o PNBE garantiu a compra de 230 milhões de livros de literatura para escolas públicas.

Mais recentemente, em julho de 2019, o governo federal extinguiu o conselho consultivo do Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL). O mesmo decreto, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra, também reduziu o número de representantes da sociedade civil no conselho diretivo do PNLL.

O PNLL foi criado em 2006 e instituído em 2011, com o objetivo de estabelecer diretrizes para uma política pública voltada à leitura e ao livro no Brasil. Para isso, recebia apoio do conselho consultivo.

Já o conselho diretivo do PNLL agora conta com apenas um representante da sociedade civil, escolhido por seu “notório conhecimento literário” – antes eram dois.

A socióloga e educadora Lourdes Atié vê a falta espaço e acervo para ler como “uma forma perversa” de impedir que as crianças ampliem suas referências para compreender e se relacionar com o mundo.

“Isso agrava os indicadores de analfabetismo funcional e compromete o desempenho escolar, considerando que a leitura é fundamental para acessar todo o tipo de conhecimento”, afirma Atié.

Leia mais: Especialistas analisam a crise no MEC e os descaminhos da alfabetização

Leitura, alfabetização e desenvolvimento cognitivo

O anuário da Educação Básica 2019, elaborado pela ONG Todos pela Educação, mostra que apenas 45% das escolas públicas brasileiras possuem biblioteca ou sala de leitura. Além disso, menos da metade (45,3%) dos estudantes do 3º ano do ensino fundamental tem nível de proficiência considerado suficiente em leitura.

Para o ilustrador Roger Mello, único brasileiro a vencer o Hans Christian Andersen – o prêmio de literatura infantil mais prestigioso do mundo –, a biblioteca deveria ser o coração (ou o cérebro) da escola.

“A biblioteca leva ao aluno a possibilidade e a capacidade de descobrir suas zonas de interesse. Não existe aprendizagem sem ficção, sem fantasia”, diz Mello.

A leitura de obras ficcionais no ambiente escolar é mais comumente associada a uma ferramenta de alfabetização e ensino da língua portuguesa. Mas o impacto da literatura no processo de aprendizagem perpassa diversos campos, sendo essencial também no desenvolvimento cognitivo e social de crianças.

“A literatura, além de aguçar a capacidade de abstrair, permite lidar com entraves emocionais, traumas, sentimentos indesejáveis que todos temos e precisamos domar”, explica a psicanalista Diana Corso, autora de livros como Adolescência em cartaz e Fadas no divã.

Ou seja, mais do que melhorar o vocabulário e a escrita, a literatura é imprescindível na preparação para a vida adulta.

Nesse sentido, Lourdes Atié afirma que os jovens devem entrar em contato com a linguagem escrita mesmo antes de saber ler.

“Até os anos 1980, primeiro as crianças era alfabetizadas e, depois, tinham acesso à literatura. Isso mudou radicalmente. A criança lê mesmo antes de dominar o código alfabético. Aprende a ler imagens e memoriza aquilo que é lido para ela. Este é o caminho para a formação de um leitor”, completa Atié.

Leia mais: A alfabetização e o letramento no Brasil, segundo Magda Soares

Literatura na infância e revolução digital

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Livros digitais: a revolução não chegou ao público infantil. Crédito: Kobo/divulgação.

O fato de o livro infantil significar bem mais do que leitura talvez ajude a explicar o porquê de a revolução digital não ter transformado o segmento, como fez em outros. O que mais chama atenção nos e-books é a possibilidade de carregar muitas obras em um único dispositivo, finalidade pouco atrativa para os pequenos.

Assim como exercem fascínio em muitos adultos, as publicações impressas são como brinquedos para crianças.

“Experiências digitais também podem ser lúdicas, mas brincar mesmo envolve o corpo, o toque, todas as dimensões de um objeto que despertam os cinco sentidos. A criança precisa mais da concretude do objeto que lhe encanta do que os adultos”, explica Diana Corso.

Já para Atié, a revolução digital não vai substituir os livros, pois se tratam de universos distintos.

“Textos rápidos com joguinho vão bem nos ambientes digitais. Mas a literatura infantil sem imediatismo exige desfrute, tempo para mergulhar na leitura, nas imagens. O livro impresso traz outros desafios, como a textura do papel, a espessura da capa, o tamanho do livro, seu formato. São finalidades diferentes”, afirma.

Enquanto não encontra um formato que não seja a mera imitação do livro, os e-books dificilmente vão avançar na produção e na oferta de novos títulos. O caminho, segundo Roger Mello, pode estar em produções como os livros-brinquedo lançados pela ilustradora e escritora Mariana Massari, com sons e recursos de touchscreen.

Leia mais: Por que os livros didáticos são mais baratos no Brasil do que nos EUA

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