O mercado reagiu bem à Portaria 2.117, que permite instituições de ensino superior (IES) oferecer até 40% da carga horária de cursos presenciais na modalidade a distância (EAD). A nova regra é vista de maneira positiva porque abre caminho para a consolidação de uma educação mais híbrida.
“O Brasil precisa superar a dicotomia entre ensino presencial e EAD. A terminologia ‘educação a distância’ está em desuso no mundo”, afirma Ronaldo Mota, ex-chanceler da Estácio (atual Yduqs) e que entre 2005 e 2006 atuou como secretário nacional de Educação a Distância – pasta extinguida pelo Ministério da Educação (MEC) em 2011.
Em entrevista ao Desafios da Educação, o atual diretor científico da Digital Pages e membro da Academia Brasileira de Educação diz acreditar que em breve “será muito difícil distinguir” o que é ensino presencial e o que é ensino virtual. Por isso defende uma flexibilização da legislação, dando liberdade para as melhores IES estruturarem a carga horária dos cursos, sem limitações.
Na conversa, por telefone, Ronaldo Mota também avalia a atual gestão do MEC, fala sobre tecnologias educacionais e opina sobre os rankings universitários e o Pisa. A seguir, confira os melhores trechos da entrevista.
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Como o sr. avalia o primeiro ano do MEC, sobre o guarda-chuva de Jair Bolsonaro, e a atuação do ministro Abraham Weintraub? A verdade é que, até o momento, não há nenhuma política educacional sobre a qual se possa opinar. O que se viu é algo associado a uma suposta guerra ideológica. A falta de uma política educacional se expressa como uma inação. Ou seja, não se vê nada no horizonte que possa resultar de uma ação em curso por parte do MEC.
Os países que têm implantado experiências de sucesso são aqueles com continuidade, transparência e efetividade em suas políticas educacionais. No caso brasileiro, não podemos nem discutir efetividade – pois não há nem sequer uma proposição. Se alguma palavra caracterizou o último ano, essa palavra é tumulto.
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Qual é o impacto dessa falta de políticas educacionais? Isso pode desencadear problemas em diversos setores dependentes da educação. Para citar um exemplo: o Brasil tem, hoje, uma produtividade muito baixa na comparação com nossos concorrentes na economia global.
A maneira mais efetiva de buscar um aumento da produtividade é aumentar o nível de escolaridade e a qualidade da educação, o que demanda políticas que são responsabilidade do MEC. Exatamente sobre isso, ao que consta, não houve nenhuma evolução.
A educação a distância é que tem puxado o crescimento do setor de ensino superior. Isso significa que o Brasil superou os preconceitos? Acho que temos superado esse preconceito, sim. Tanto do ponto de vista daqueles que procuram a EAD para estudar quanto dos empregadores que contratam profissionais oriundos dessa modalidade. Até porque quase todas as empresas levam em conta a familiaridade com o uso de plataformas digitais na hora de contratar.
Mas o mais importante é que o Brasil precisa superar a dicotomia entre ensino presencial e a distância. A terminologia “educação a distância” está em desuso no mundo. O Brasil é um dos últimos países a mantê-la.
O que se fala hoje é sobre uma educação digital. A educação digital viabiliza uma formação flexível, híbrida e, especialmente, personalizada.
Essa personalização é a principal vantagem de uma educação digital. A partir da utilização de plataformas de análise de dados, é possível conhecer muito melhor o aluno. E, com isso, propiciar trilhas educacionais apropriadas às suas necessidades. A partir dessas informações, também é possível selecionar as mídias a que ele melhor vai se adaptar em termos de aprendizagem.
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Será que o aumento para um máximo de 40% de EAD em cursos presenciais faz o Brasil caminhar em direção à educação digital? Certamente ela contribui para propiciar novas experiências no campo da educação presencial. Mas não é o suficiente. Eu apostaria na direção de uma política educacional com regras mais flexíveis que permitam, aos cursos mais bem avaliados, inovar como acharem mais conveniente, sem regras de natureza numérica.
A própria noção de presencialidade vem sendo alterada gradativamente, conforme novas tecnologias vão surgindo. Será muito difícil distinguir em que medida as atividades se caracterizam como presenciais ou virtuais. Basta citar a revolução que representa a realidade mista na educação. Ela combina elementos da realidade imersiva com a permanência de atividades de caráter presencial.
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Na Medicina, por exemplo, é possível que um médico esteja operando um paciente ao mesmo tempo que é assessorado por imagens virtuais. Estamos fazendo uma mistura de realidade física imediata com a presença simultânea de uma realidade virtual simulada. Em suma, caminhamos em direção a uma apropriação muito bem-vinda de elementos como realidade virtual, realidade aumentada e inteligência artificial.
Não faz o menor sentido imaginarmos uma educação voltada para o futuro que não faça uso intensivo dessas ferramentas. Elas têm uma aderência enorme na formação dos profissionais e uma facilidade de serem incorporadas pela nova geração, o que permite que essas tecnologias incrementam aprendizagem visivelmente.
Então o sr. defende uma flexibilização ao ponto que não exista uma limitação de carga horária EAD, por exemplo? Mundialmente, o que os educadores defendem é que existam maneiras de aferir qualidade. Se você pode aferir qualidade, os cursos bem avaliados devem ter uma enorme flexibilidade sobre como adotar novas metodologias, incorporar novas ferramentas e desenvolver novos modelos pedagógicos.
Isso vai em contraposição a ideia de que você deva limitá-los definindo regras específicas. O que o estado deve fazer são aferições de qualidade. E, tendo qualidade, estimular para que os cursos possam inovar e explorar novos modelos.
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Essa flexibilidade deve valer também para os cursos de pós-graduação? A Capes já autorizou a criação de mestrados EAD. Também se trata de perguntar se os cursos de pós-graduação stricto sensu são suficientemente bons para serem estimulados a fazer qualquer tipo de experiência educacional que atinja os objetivos a que se propõem.
Eu defenderia até com mais ênfase essa experiência de flexibilização no mestrado e doutorado porque, reconhecidamente, a prática avaliativa da Capes tem um nível de reconhecimento internacional.
Na minha visão, os cursos com avaliação 5, 6 ou 7 pela Capes não deveriam ficar sob nenhum tipo de regramento sobre como vão explorar as suas disciplinas. E mais: deveriam ser desafiados a inovar do ponto de vista educacional. Se essa inovação vai ser baseada em explorar disciplinas a distância ou não, quem melhor pode definir isso é o colegiado de cada curso a partir de cada realidade.
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Mas como apostar na digitalização da educação superior, tendo em vista que alguns conselhos chegaram a negar o registro profissional para os egressos de cursos de EAD? A preocupação dessas organizações deve estar associada a questão da qualidade dos profissionais que estão sendo formados. Com isso, eles estão corretos em se preocupar. O que me parece estranho é que eles talvez tenham concluído apressadamente que a má qualidade está associada à EAD.
Não há nenhuma comprovação de que a adoção de tecnologias digitais prejudica a aprendizagem. Pelo contrário: há fortes evidências, aceitas mundialmente, que a adoção de plataformas digitais de aprendizagem colaboram enormemente com a formação profissional.
Na área da Saúde, particularmente, existem centenas de experiências de uso da tecnologia consolidadas que permitem um aprendizado da anatomia e da fisiologia humana sem nenhum precedente no ensino tradicional. Vamos desprezá-las? Não vamos incluí-las nos nossos currículos?
Não acredito que essas corporações estejam pleiteando isso. No campo Medicina, formar um médico sem que ele tenha uma forte experiência de telemedicina, por exemplo, seria temerário.
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Como o sr. avalia a atuação das IES públicas na educação digital? Quando eu era secretário de educação a distância do MEC, demos origem a experiência da Universidade Aberta do Brasil. Um sistema que envolve as universidades públicas, especialmente as federais.
Foi algo extremamente positivo. Não só por ter sido a primeira experiência de educação digital organizada no Brasil, mas principalmente porque teve um impacto positivo nos cursos presenciais tradicionais.
Como os professores da Universidade Aberta eram os mesmos dos cursos presenciais, eles automaticamente incorporaram as ferramentas da educação a distância no ensino presencial.
Infelizmente, a Universidade Aberta não seguiu no mesmo ritmo desde então. Isso é uma lástima porque as universidade públicas são as que mais e melhoram desenvolvem pesquisa no Brasil e precisam estar próximas dessas novas tecnologias.
E o que muda na formação dos professores para que ensinem competências na era digital? A principal competência que um docente precisa é estar preparado para ter extrema tolerância associada ao fato de que, em geral, seus educandos terão uma maior facilidade de conviver no mundo digital do que eles.
Isso é natural, não significa um demérito. O professor precisa conjugar a sua experiência do ponto de vista do domínio de conteúdo, procedimento e técnicas com a extrema facilidade que seus educandos provavelmente vão ter para utilizar um conjunto de ferramentas digitais. Dessa combinação, resultará uma melhoria substancial da aprendizagem.
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Falando em melhorias de aprendizagem, vamos falar de avaliação. Devemos nos preocupar com o desempenho do Brasil em rankings internacionais? Esse é um falso problema. O Brasil tem um conjunto muito mais grave de problemas para serem enfrentados. Eu não enquadro entre eles o fato de não termos, hoje, uma universidade entre as 100 melhores do mundo. Temos ótimas universidades que se encontram ranqueadas. O fato de elas não estarem entre as 100 ou 200 primeiras não envergonha em nada o Brasil.
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Mesmo um país de economia pujante e indústria competitiva como a Alemanha fica de fora ou aparece com apenas uma ou duas universidades entre as melhores do mundo em diversos rankings. A Alemanha é a economia mais criativa e competitiva da Europa, mas ninguém lá está tão preocupado porque, eventualmente, as suas universidades não constam nos rankings.
E quanto ao Pisa? O Pisa reflete o fato grave de que nossos jovens não estão aprendendo suficientemente. Mas não vejo como estabelecer uma política educacional única e exclusivamente voltada a melhorarmos o desempenho do Brasil no Pisa.
Com todo o mérito e reconhecimento que o Pisa merece, ele é um dos elementos a serem ponderados, mas nem sequer diria que ele é o principal. Acho que temos que ter políticas educacionais que melhorem a aprendizagem dos alunos. Como consequência, que eles possam ir melhor no Pisa.
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