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Bicentenário da Independência: os desafios históricos da educação brasileira

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O jornalista Antônio Gois tem mais de 25 anos cobrindo a área da educação. Ganhador de diversos prêmios jornalísticos, sempre com reportagens sobre educação, ele também é autor de “Quatro décadas de gestão educacional no Brasil” e “Líderes na escola”. Mais recentemente, lançou “O ponto a que chegamos: duzentos anos de atraso educacional e seu impacto nas políticas do presente”, pela editora FGV.

No livro, o autor defende que “entender a trajetória da educação no Brasil é parte fundamental do esforço para melhor diagnosticar os desafios atuais, evitando soluções simplistas para problemas estruturais complexos”. Na véspera do bicentenário da Independência, o Desafios da Educação conversou com Antônio Gois para entender o ponto que chegamos.

O jornalista Antônio Gois lançou, recentemente, lançou uma obra que relaciona os desafios passados e atuais da educação brasileira. Créditos: Alice Vergueiro/Jeduca.

A concepção de um sistema educacional desigual desde a origem do Brasil não foi fruto do acaso, mas uma estratégia às vezes até explicitada em documentos e discursos públicos de autoridades. Como essa “cultura” sobrevive até hoje? 

A desigualdade é a principal explicação para o nosso atraso educacional. Ela não surgiu do nada, pelo contrário. É o ponto de partida da construção da nossa sociedade. Podemos dizer que nesses últimos 200 anos o sistema educacional naturalizou as desigualdades. Às vezes, isso estava explícito, como no Estado Novo. Nessa época, a Constituição dizia que a educação profissionalizante era destinada às classes desfavorecidas e que o ensino secundário deveria ser voltado às elites condutoras.

Essa concepção de que há um caminho para as elites e outro para os mais pobres sempre existiu no sistema escolar. Estava na Constituição e obviamente na prática e na cultura. Hoje em dia, a cultura é muito difícil de mudar, mesmo que as leis já tenham caído.

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Como você vê as mudanças no ensino médio e as opções mais profissionalizantes? 

As pessoas usam os exemplos do passado para criticar a educação profissionalizante. O que a gente vê, com base em dados, é que os alunos que cursam as escolas de ensino médio na modalidade profissionalizante têm resultados melhores no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa).

Tem um caminho que se bem aproveitado é promissor: ampliar a educação profissionalizante, sem prejuízo ao lado acadêmico da formação. É o acadêmico que vai definir se o estudante vai conseguir uma vaga em universidade via Enem.

O desafio do Brasil é fazer isso em escala. Essa lógica do passado, de que a educação profissionalizante é ‘para pobre’ é sempre um risco, por isso, precisa ser acompanhada de perto. Se vai acontecer isso ou não, depende da qualidade da implementação desse projeto. Acredito que essa seja a principal questão.

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Houve algum momento da história do Brasil em que a educação esteve no centro das prioridades? 

Sem dúvida houve momentos em que a educação teve mais importância do que outros. E esses momentos foram os de democracia. A democracia não é perfeita, mas ela foi muito positiva para a área, em comparação com os períodos autoritários.

No livro, cito trabalhos de alguns economistas, como o Peter Lindert, que mostram que, quanto maior o direito ao voto, mais se investe em educação, saúde e assistência social. Isso a gente viu muito claramente no período de redemocratização do Brasil, quando houve um aumento significativo dos investimentos em proporção ao Produto Interno Bruto (PIB).

Em termos de acesso, não há dúvida que o aumento desses investimentos fez diferença. Por exemplo: em 1985, apenas 14% dos jovens de 15 a 17 anos estavam matriculados no que hoje chamamos de Ensino Médio. Atualmente são 75%.

Em 1989, só 5% das crianças de 0 a 3 anos estavam em creches. Hoje são 37%. Além dos benefícios escolares dos pequenos, existem todos os aspectos de aumento de empregabilidade e renda, especialmente por parte das mães. Há estudos mostrando essa relação no Brasil e no mundo. Isso é algo que beneficia a sociedade em geral.

A aprendizagem também melhorou ao longo dos anos. Olhando a proporção de alunos com aprendizagem adequada vemos que em 1995, quando começa a série histórica, a gente saiu de 19% de crianças no quinto ano com aprendizagem adequada em matemática para 52% em 2019.

Precisamos olhar esses dados de várias maneiras. Uma delas é reconhecer o avanço, que não foi pouco. Outra é lamentar que o acesso ainda não esteja ao alcance de todos. Além disso, é preciso reconhecer que seguimos com sérios problemas de aprendizagem.

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No livro você afirma que, como sistema, nunca tivemos uma educação de qualidade. Por quê? 

Por causa das estatísticas. Algumas delas mostram, por exemplo, que na década de 1940 de cada 1 mil alunos que ingressavam na primeira série do que era o antigo ensino primário (que hoje seria o ensino fundamental), só 404 iam para o segundo ano. Ou seja, só do primeiro para o segundo ano, mais da metade das crianças ficavam pelo cainho.

Desses 1 mil, apenas 20 concluíam todo o ciclo de estudos, de 11 anos de formação. Em termos percentuais, isso é 2%. Na década de 1960 melhora um pouco, mas continuamos tendo mais da metade das crianças não passando do primeiro para o segundo ano. E as que chegavam ao final do ciclo completo eram 64 (cerca de 6%).

Olhando os dados da educação pública do passado, vemos que o sistema educacional era uma grande máquina de exclusão em massa que abusou do expediente da repetência sem que isso resultasse em mais qualidade.

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Como mudar esse quadro? 

Acredito que a grande chave seja radicalizar o conceito de equidade em toda a educação básica. A equidade pressupõe o reconhecimento das desigualdades e o trabalho para corrigi-las, dando aos que mais precisam mais apoio, justamente para eles reverterem essa situação injusta.

Uma vez que você consegue, via políticas de equidade, reverter esse cenário, aí você pode falar de mérito. Importante destacar que não estamos falando de eliminar as diferenças ou a diversidade. Muito pelo contrário, elas são benéficas ao processo de ensino. Estamos falando de erradicar as desigualdades.

Isso não é só uma questão de justiça com a população mais pobre. É também uma questão de desenvolvimento econômico. O País ganha. Com políticas mais equitativas a gente vai ter um sistema educacional melhor. Um sistema público melhor beneficia inclusive os alunos mais ricos, pois a escola particular deixa de ser uma necessidade para ser uma opção. A partir do momento em que ela passa ser uma opção, os pais vão cobrar muito mais das instituições particulares.

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Como esse histórico afeta o nosso presente e o nosso futuro enquanto nação? 

Afeta muito e esse é o principal argumento do meu livro. Uma das evidências mais consolidadas no campo da avaliação educacional é a transmissão intergeracional dos efeitos da educação.

Por exemplo: há pesquisas mostrando que aos 18 meses de idade já existe diferença de vocabulário de crianças com pais menos escolarizados e mais pobres e os filhos de pais mais escolarizados e mais ricos. Pura e simplesmente a transmissão do grau de escolaridade dos pais para os filhos.

Há muitos estudos mostrando que o principal fator que explica o desempenho dos alunos na escola é o nível socioeconômico dos pais. Não é que a escola seja desimportante, longe disso. Mas geralmente quando se mede o desempenho dos estudantes em testes de larga escala, boa parte do que está sendo capturado é a escolaridade dos pais. Por tanto, você está medindo os alunos hoje, mas você está captando as consequências do baixo investimento no passado.

Ou seja, as injustiças vão sendo passadas de geração em geração.

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Em meio ao cenário atual, o que é que a educação tem de bom? 

Temos que fugir de debates rasos na educação, como se a gente tivesse que dizer: afinal, a educação brasileira é boa ou ruim? A gente precisa ter maturidade para reconhecer avanços.

Políticas de financiamento como o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que tem origem no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) lá no governo Fernando Henrique, atravessa a gestão dos presidentes petistas e o último Fundeb foi aprovado em pleno governo Bolsonaro. Essa é uma política que vai em direção a um financiamento mais equitativo na educação. Não é perfeita, mas é um avanço enorme. Os avanços em termos de acesso também são muito bons.

Quando comparamos a situação atual de alguns estados, vemos Pernambuco no Ensino Médio, e Ceará no Ensino Fundamental, descolando não só da média do Nordeste, mas ultrapassando estados mais ricos do Sul e Sudeste, por exemplo.

Esses estados têm apostado em políticas públicas coerentes e sustentáveis, que não dependem apenas de um fator. No Ceará tem a questão da alfabetização na idade certa, mas tem a formação dos professores e incentivos por parte do estado aos municípios para que avancem mais.

Em Pernambuco tem a ampliação da escola integral, mas não é só isso. Existe um olhar para a equidade, uma reformulação do currículo, investimento em formação de diretores e professores. Quando vemos os exemplos exitosos percebemos que se trata de uma série de ações que acontecem ao mesmo tempo e que têm continuidade política, o que é muito importante.

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