Analisar o cenário da educação brasileira é sempre um exercício necessário, ainda mais quando ela passa por profundas transformações tecnológicas e nos modelos de aprendizagem. E para entender qual é o panorama atual do País, o Desafios da Educação conversou com Claudia Costin, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), presidente do Instituto Singularidades e ex-diretora de educação do Banco Mundial.
Nesta entrevista, ela analisa os desafios deixados pela pandemia, os rumos que o Brasil precisa seguir em relação as práticas pedagógicas e, claro, a presença cada vez maior da inteligência artificial (IA) na educação. “Não dá para competir com a IA e formar robôs”, afirma.
Confira a entrevista.
“Nos últimos anos, velhos problemas da educação brasileira se agravaram ainda mais. Quais se perpetuam até hoje?
O período do governo Bolsonaro foi bastante complicado para a educação. Porque o discurso era: “vamos dar preferência para a educação básica”. Mas, o que houve foi um ataque muito forte às universidades, e a educação básica ficou paralisada.
O Ministério da Educação (MEC) tem o papel de coordenar a política nacional de educação. E esse trabalho não foi feito, ou, para ser mais preciso, foi feito apenas parcialmente, mas muito menos do que deveria. A educação do Brasil só não paralisou por causa do conselho que reúne os secretários estaduais de Educação.
A pandemia colaborou para isso?
O Brasil pré-pandemia já tinha índices de alfabetização inaceitáveis. A última Avaliação Nacional de Alfabetização mostrava que 55% das crianças saíam não alfabetizadas do terceiro ano do ensino fundamental. Fomos considerados pelo Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) o segundo país mais desigual do ponto de vista estritamente educacional entre os que participaram.
Tínhamos problemas graves de desigualdade educacional e de aprendizagem e, naturalmente, com a pandemia, esses problemas se agravaram. As mais atingidas pelos efeitos da pandemia foram as crianças que estavam na fase de alfabetização. Então, se os números já eram preocupantes, a gente pode pensar que hoje são ainda mais.
Por outro lado, as crianças são as que têm mais tempo para repor a aprendizagem perdida. Os jovens que estavam no ensino médio tiveram perdas muito importantes.
Quais os principais desafios do ensino superior?
A inteligência artificial, a chamada quarta revolução industrial. Dois analistas importantes da Universidade de Oxford mostram que, até 2030, três bilhões de postos de trabalho vão ser extintos. Não vai ser do dia para a noite, mas em ondas sucessivas e, em alguns casos, profissões inteiras.
Evidentemente, novas profissões e outros postos de trabalho vão ser criados, mas vão demandar competências muito mais complexas do que o nosso sistema educacional consegue oferecer.
Isso significa que vamos ter que melhorar a qualidade da educação, diminuir a desigualdade e, ao mesmo tempo, oferecer ou desenvolver nas crianças e jovens competências muito mais sofisticadas. Tudo isso quando a gente não está conseguindo nem alfabetizar direito.
E o Brasil consegue fazer isso?
Sim. O Brasil não tem o direito de pensar pequeno. Estamos entre as dez maiores economias do mundo. Ou seja, não somos um país pobre, somos um país desigual. Temos que pensar grande e apostar na juventude, porque o mundo não vai ficar esperando o Brasil.
Leia mais:
- Compromisso Nacional Criança Alfabetizada: conheça a nova política pública
- Jean Piaget, o biólogo que revolucionou a educação
- Programa alagoano de educação é inspiração para o atual governo
Como você avalia a forma como a IA chegou na educação?
Uma série de ferramentas de inteligência artificial chegou na educação, mas de maneira desigual. Se não tomarmos cuidado, a inteligência artificial vai aprofundar ainda mais as desigualdades. E nós sabemos que disparidades educacionais refletem desigualdades sociais.
Então é necessário tomar um grande cuidado. Eu acho que o Brasil tem que ficar obcecado por equidade. E, ao contrário do que várias narrativas têm apresentado, isso não significa tornar o currículo mais fácil, nem ter baixas expectativas de aprendizagem em relação aos estudantes mais pobres. É exatamente o oposto.
Isso quer dizer que vamos ter que olhar para aquela criança que tem um repertório cultural mais frágil e descobrir formas de enriquecer e ao mesmo tempo de construir autonomia nesse estudante. A boa notícia é que competências socioemocionais são ensináveis. É por isso que elas precisam entrar no currículo, não só porque talvez soe bonito ou humano, mas porque elas preparam crianças e jovens para lidar com desafios grandes, especialmente na construção de equidade.
Você é uma grande defensora do currículo humanizado. Ele é o melhor caminho para a educação?
Sim, o currículo humanizado pode ser uma grande saída, mas, antes, precisamos entender o que ele é e o que não é. Algumas das dificuldades de enfrentamento dos desafios educacionais são as coisas bonitinhas – aquilo que soa lindo, mas sem nenhuma evidência científica de que funciona. Ser professor é uma profissão complexa e existem práticas que funcionam melhores que outras.
Nós temos que olhar para o que funciona. Um currículo humanizado aposta na capacidade de todo ser humano para aprender, independentemente da deficiência que esse ser humano tenha, sua origem social, seu grupo étnico e racial. É apostar no ser humano.
Muita gente traduz o currículo humanizado para um currículo mais raso, em que a criança fica no ritmo dela. Não é assim. O papel do professor é trabalhar a curiosidade do aluno dentro do estágio em que ele se encontra para desenvolver. Então, o currículo humanizado não é tratar a criança com pena, é tratar a criança motivando e ao mesmo tempo instigando para que avance.
O currículo humanizado é uma resposta em tempos de inteligência artificial?
Não podemos competir com a inteligência artificial e ficar robotizando o aluno, mas sim tornando-o ainda mais humano. Fazer com que a criança seja mais empática com os colegas, não tenha preconceitos e seja capaz de ter paixão por aprender. Mas, ao mesmo tempo, também tornar a aula menos mecânica e automática, impedindo que o professor seja visto como um mero fornecedor de conteúdos expositivos.
O currículo humanizado exige uma aula muito mais dialogada, mais mão na massa e que ensine de fato o aluno a pensar. E isso vale tanto para educação básica quanto para o ensino superior. Não vamos competir com a inteligência artificial se nos tornarmos robôs.
A educação brasileira está avançando? Quais as pautas que merecem atenção?
Eu acho que estamos indo devagar demais, com grandes riscos e com um Congresso, é bom lembrar, em que predomina o fisiologismo. Por outro lado, o MEC tem avançado na agenda do tempo integral, o que eu acho muito positivo. O Brasil não pode mais achar que uma décima terceira economia interna de PIB vai ter no turno da manhã uma parte dos alunos, outros no turno da tarde e um terceiro grupo no turno da noite. Não dá, em tempos de ChatGPT e de inteligência artificial, para ter aula só despejando conteúdo sem ensinar o aluno a ser um pensador autônomo.
Segunda coisa que avançamos corretamente é em colocar ênfase em alfabetização. A alfabetização no Brasil não estava funcionando, agravou com a pandemia e nós temos que lidar com essa agenda de uma maneira importante.
Como o preparar os professores para lidar com esses desafios educacionais?
É muito desafiador. Por isso que ser professor não é para amadores. Eu acho que o principal passo é resgatar o caráter profissional de ser professor. É um fazer desafiador, e o docente tem que ser adequadamente preparado e remunerado para isso. Ele não precisa de piedade, precisa de uma abordagem profissional.
Então, temos que sair desse academicismo na formação de professores, sem desmerecer e sem descuidar da teoria, mas colocando a teoria em conexão com a prática. Isso precisa mudar no País.
Leia mais:
Comments