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A depressão econômica é recorde – e uma nova pesquisa reforça esse cenário. Dados divulgados pelo IBGE nesta semana mostram que, pela primeira vez na série histórica, mais da metade dos brasileiros com idade para trabalhar está desocupada. É o caso de Débora Regina Moraes, moradora do bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro (RJ).

Com a crise econômica potencializada pela pandemia, ela ficou desempregada e sem condições de pagar as mensalidades da filha, matriculada em uma escola particular do Rio. A saída foi matricular a filha em uma escola pública municipal. Mas encontrou dificuldades. “Tentei uma vaga na rede pública e não consegui.”

A situação se repete no interior do estado. Kecya Rodrigues da Silva, também desempregada, tem duas filhas matriculadas em uma escola privada na Baixada Fluminense. Ela pretende inscrever as meninas em uma escola da rede estadual. “Mas o site do governo diz que, no momento da pandemia, as matriculas estão suspensas.”

Como matricular os filhos na escola pública? No RJ, sistema está indisponível. Crédito: reprodução.

Relatos como o de Kecya e de Débora, que trocam colégios particulares por escolas públicas, estão crescendo em todo o Brasil – à medida que a suspensão das atividades escolares se prolonga e a crise econômica se agrava.

Isso tende a afetar as instituições privadas. No ensino superior, 30% das IES podem ir à falência. No ensino básico, pagamentos atrasados, inadimplência, pedidos de descontos e, por fim, as taxas de cancelamento de matrícula têm potencial para quebrar até metade das escolas particulares brasileiras, segundo um estudo divulgado em maio.

“Nos últimos 4 meses, perdemos entre 1% e 2% dos alunos – quando, até a crise, ganhávamos de 2% a 3% de alunos por ano”, afirmou Ademar Batista Pereira, presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep). De acordo com o Censo Escolar 2019, as escolas particulares têm 9 milhões de estudantes matriculados – do ensino infantil ao ensino médio.

Só em São Paulo, o número de alunos transferidos da rede particular para a estadual cresceu mais de dez vezes nos meses de abril e maio de 2019, em comparação com o mesmo período do ano passado. A rede estadual já recebeu quase 2,4 mil transferências da rede particular, ante 219 no ano anterior. No Paraná, 8,4 mil alunos da rede privada migraram para a rede pública estadual entre março e o início de junho.

Leia mais: Guerra das mensalidades: a saúde financeira das escolas e das famílias

Dificuldade para fazer a matrícula

O que mostram os exemplos citados no começo da reportagem é que trancar a matrícula em uma escola privada é relativamente fácil. Difícil mesmo é conseguir vaga na rede pública.

Salomão Ximenes, da UFABC.

Salomão Ximenes, que é professor de política educacional da Universidade Federal do ABC (UFABC), reconhece que a pandemia impôs um desafio ao sistema de matriculas na rede pública. “Seria razoável um governo levar 20 dias ou um mês para reorganizar o sistema de cadastro. Mas três meses sem uma solução é difícil de compreender.”

Ximenes acrescenta: “A educação é um direito universal. Portanto, obrigação do Estado – que deveria ter adaptado uma resposta administrativa ao contexto da covid-19.”

Sem essa solução, pais e mães se sentem vulneráveis. É o caso de C., que não quis se identificar. Ela é de Ouro Branco (MG) e está disposta a tirar os filhos de 6 e 9 anos da escola particular. “Durante a pandemia, a renda da nossa família diminuiu muito”, justifica.

“Porém, quando procuro a secretaria de educação da minha cidade, dizem que não estão autorizados a fazer matrículas. Então liguei para a Superintendência Regional de Ensino (SRE) que, por causa da pandemia, informou que não tem ninguém para me atender. Como resolvo isso?”

Repassamos a questão à Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE/MG). O órgão informou ao portal Desafios da Educação que as unidades continuarão fechadas por tempo indeterminado e que, por isso, “as famílias dos estudantes interessadas em transferência da rede privada para a rede pública deverão encaminhar um e-mail para a Superintendência Regional de Ensino (SRE) responsável pela escola na qual o aluno busca a vaga”.

A relação completa de todos os municípios por SRE e a lista com os e-mails de cada uma das SREs está disponível no site da SEE/MG (http://www2.educacao.mg.gov.br/sobre/servicos-18/superintendencias-regionais-de-ensino). A comunicação deverá ser feita exclusivamente por e-mail, inclusive o envio dos documentos necessários.

Já a Secretaria de Estado de Educação (Seeduc) do Rio de Janeiro informou que fará “uma reunião para definir a melhor forma de migrar as matrículas de alunos da rede privada, que tenham interesse em realizar a transferência para a rede pública estadual”.

O processo provavelmente será “on-line, sem a necessidade de o aluno e o responsável comparecerem à escola”. A Seeduc também cogita disponibilizar conteúdos pedagógicos para os novos estudantes até o retorno das aulas presenciais. Questionada quando seria a reunião que vai definir o mecanismo de inscrição, a Seeduc não respondeu.

O projeto pode seguir o exemplo de São Paulo. Para efetuar a pré-matrícula, é necessário acessar o site da secretaria (https://sed.educacao.sp.gov.br/NCA/PreInscricaoOnline/login) e preencher as informações solicitadas. Será necessário fazer upload dos documentos no mesmo endereço eletrônico. As informações serão verificadas e as matrículas validadas pelas próprias escolas.

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Atividades suspensas: fechamento de escolas impede pais de matricular os filhos na escola pública. Crédito: IStock.

E enquanto não consegue vaga?

A recomendação, por ora, é documentar as tentativas de matricular os filhos na escola pública. “Formaliza o pedido de matrícula por e-mail ou telefone na secretaria da educação, e peça um comprovante do pedido ou imprima a solicitação. Por enquanto, o melhor é se resguardar. Se o estado não concede a vaga, a família não pode ser responsabilizada”, diz Salomão Ximenes.

O professor da UFABC também pede calma àqueles que acham que o ano letivo está perdido. “O cancelamento do ano letivo está fora de cogitação. Mas haverá, sim, uma adaptação curricular.”

A afirmação vai ao encontro do que disse, em maio, a diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV. Ao Desafios da Educação, Claudia Costin explicou que onde houve adesão ao ensino remoto o tempo de aula é computado dentro das 800 horas/ano exigidas pelo MEC. Para escolas que suspenderam as atividades, após a retomada será preciso usar os sábados e, eventualmente, uma ou duas horas a mais de aula por dia.

“Pode ser que haja uma flexibilização ainda maior, estendendo a carga horária ao longo dos próximos anos”, reconhece Ximenes, da UFABC. “Mas isso dependerá do andamento da curva de infecção pela covid-19.”

Em Minas Gerais, a SEE/MG informa que a reorganização do calendário do ano letivo escolar dependerá “da duração do período de suspensão das aulas presenciais” e que o estado “seguirá as orientações do Conselho Nacional de Educação e do Conselho Estadual de Educação”.

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Estudante do Amazonas: matricular filhos em escola pública durante a pandemia se tornou tarefa quase hercúlea. Crédito: Seduc/AM.

Os dois desafios do Estado

Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, reconhece que o problema – a dificuldade para arranjar matrícula na rede pública – está crescendo em muitos locais do país. Ela diz que isso impõe dois grandes desafios aos atores da política educacional – gestores, conselheiros, órgãos de controle, em conjunto com as comunidades escolares.

  1. O primeiro diz respeito a uma questão estrutural, que exige articulação interfederativa;
  2. O segundo se relaciona com a burocracia.

Ela explica: “O primeiro tem relação com financiamento da educação, que já era aquém do necessário em termos de investimento por aluno e agora se faz ainda mais para o enfrentamento aos efeitos da pandemia e para a reabertura das escolas, como também para garantir novas vagas.”

Andressa Pellanda.

Novas vagas exigem mais profissionais e maior estrutura da escola para comportar os novos estudantes. “Para esse financiamento acontecer, é preciso esforço da União na complementação a estados e municípios – é o debate que estamos travando em torno do novo Fundeb“, diz Pellanda.

“O segundo tem relação com a criação de possibilidade e de flexibilização para matrículas nesse período do ano, fazendo alguma reorganização que acolha os estudantes, sem prescindir da qualidade.”

A criação de um novo mecanismo para pleitar matrícula numa escola pública dependeria de novas regulações e autorizações por parte dos órgãos de gestão, regulação e controle, como também de financiamento – daí Pellanda volta ao ponto anterior.

“Se não aprovarmos um Fundeb com mais recursos da União e novos (não trazidos de outros programas, como o Salário-Educação), seguiremos com esse e outros desafios latentes e esgarçando ainda mais o fosso das desigualdades educacionais do país.”

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*Reportagem atualizada em 06/07/2020, às 13h14.

Leonardo Pujol
Leonardo Pujol é editor do portal Desafios da Educação e sócio-diretor da República, agência especializada em jornalismo, marketing de conteúdo e brand publishing. Seu e-mail é: pujol@republicaconteudo.com.br

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