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“A versão da história que aprendemos na escola não explica o Brasil”, diz Tiago Rogero

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Neste mês de janeiro, a lei 10.639, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para incluir no currículo oficial a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira completa 20 anos. Mas, infelizmente, sua aplicação ainda não é uniforme e nem 100% efetiva em todo o território nacional.

O que impede um país com uma lei que já vigora há duas décadas de colocá-la em prática? A resposta está na própria trajetória nacional – ou melhor, na história oficial, um tanto distorcida, que é habitualmente propagada nas escolas.

Fazer uma releitura da nação trazendo o foco para as personalidades e para os feitos dos povos afrodescendentes é a proposta do podcast Projeto Querino, encabeçado pelo jornalista Tiago Rogero.

Tiago Rogero. Crédito: Leo Martins / Divulgação

Nesta entrevista concedida com exclusividade ao Desafios da Educação, ele ajuda a entender os motivos que fazem o ambiente escolar e acadêmico ainda representar, para muitos, um local de exclusão – mesmo quando a intenção é exatamente o oposto disso: ser um espaço de transformação, esperança e possibilidades.

Confira a entrevista, editada para oferecer maior compreensão e clareza:

No podcast você explica como o colonialismo tirou das crianças negras a oportunidade de estudar. Qual a sua opinião a respeito das cotas?

As políticas de ação afirmativa são uma das maiores revoluções culturais que aconteceram no Brasil. Elas mudaram a forma como o País pensa, como valorizamos o conhecimento. Mudaram as possibilidades de existência de corpos que foram sempre relegados a ocupar apenas cemitérios ou postos de trabalho mal remunerados.

É importante lembrar que essas políticas foram lutas dos movimentos negros e que hoje beneficiam brancos pobres, indígenas e pessoas com deficiência. O povo negro lutou para que todo mundo que fosse marginalizado e que historicamente não teve acesso à educação no Brasil pudesse ter. Isso é muito importante.

O impedimento do acesso à educação em muitos momentos da história se deu por meio de lei, e ele ainda se dá de muitas formas. Como lidar com isso?

O que a gente tem que ter em mente é que as cotas são um passo importante, mas vivemos em um país extremamente pobre, que foi tornado ainda mais pobre nos últimos quatro anos e que as pessoas mais atingidas pelas desigualdades sociais são as pessoas negras.

Além disso, a pessoa negra cotista muitas vezes precisa dividir o estudo com um monte de outras coisas, como o trabalho. Às vezes ela não tem dinheiro para poder se manter, para o transporte, por exemplo. Então, é essencial oferecer esse tipo de auxílio aos estudantes que estão ingressando na universidade por meio de cotas, para a gente seguir na toada que essa revolução possibilitou.

Já é possível perceber os resultados dessas políticas?

É por causa dessa revolução que um monte de coisa está acontecendo no Brasil. É por causa dessa revolução que a gente tem tantos autores negros entre os mais vendidos. Temos uma sensação de aumento na denúncia de casos de racismo, por exemplo. É porque as pessoas estão tendo acesso a essa informação e estão se posicionando mais.

O próprio Projeto Querino não existiria se não fosse pela política de ações afirmativas. Até mesmo pela quantidade de conteúdo que foi produzido desde então. A gente bebe desse conteúdo, um conteúdo novo que está sendo feito e que também relembra ou tira do lugar o que a intelectualidade branca procurou esconder, obras que há muito tempo não eram consideradas.

Qual a importância de fazer esse resgate histórico sobre a contribuição dos povos negros e indígenas para o Brasil?

A versão da história que a gente aprendeu na escola, essa versão majoritariamente branca, masculina, europeia, a versão dos ditos vencedores, é uma versão que não explica o Brasil de hoje. Ela não explica, ela não dá conta de explicar esse País. Então há esforços há muito tempo, e o Querino é só mais um, para tentar explicar o Brasil com toda a sua complexidade.

Ignorar o protagonismo das pessoas negras e das pessoas indígenas é agir como um antivacina, sabe?

O que a gente trata no Querino são assuntos que já estão sendo discutidos, produzidos pela historiografia, pela antropologia, pela sociologia há bastante tempo. E muitos desses assuntos soam, inclusive, como novidade para as pessoas. Isso por culpa de um país que é estruturalmente racista, por um interesse de que se mantenha a história que beneficia as elites brancas que sempre governaram o Brasil e que provocaram boa parte, se não todos os problemas com os quais a gente tem que lidar até hoje.

Outro aspecto que você aborda é a questão da potência de saber a própria história, e o podcast faz esse resgate. Trazer conteúdo desse tipo para dentro das escolas poderia impactar positivamente a vida das crianças?

A escola é muito importante. Ela é o lugar em que muitas pessoas negras têm o primeiro contato com o racismo. E isso pode vir de um professor, de um diretor, de um profissional da escola, de um coleguinha… Muitas vezes esse é um ambiente cruel.

A maior parte da história que conhecemos do Brasil foi vivida como colônia. O que eu aprendi na escola mostrava que a única possibilidade de existência de uma pessoa negra era como o escravizado, no tronco, sendo torturado.

Eu não aprendi que aquela pessoa poderia estar bolando uma insurreição, ou mesmo que ela estava aprendendo a ler, algo que era proibido. Que ela estava formando família, ou professando a fé dela, mesmo sendo proibido. Eu não aprendi que no mesmo período em que havia uma pessoa negra torturada, poderia ter uma pessoa livre exercendo a profissão de médico, de curandeiro, de advogado, de jornalista, de escritor. Eu não aprendi sobre Luiz Gama (advogado, jornalista e patrono do movimento abolicionista brasileiro), sobre os nossos grandes nomes.

Aprender sobre isso permite que você se veja não no lugar do escravizado, que muitos dos nossos antepassados de fato foram, mas eles não eram só isso. Eram pessoas com agência, com sonhos, com anseios. Quando você aprende esse outro lado, pode se ver também como advogado, escritor, médico, engenheiro… Porque a gente foi tudo isso.

Ter acesso a esse conhecimento traz uma possibilidade enorme de potência que é empregada por muitos professores heroicos. A escola também pode ser o lugar que vai empoderar as crianças.

Você acha que a educação brasileira pode mesmo ser antirracista?

Acho importante demarcar que não sou um professor. Então, qualquer impressão que eu tenha sobre a educação vai se limitar a ser uma impressão, um olhar de alguém de fora que vem se debruçando sobre a historiografia nacional. Acredito que ela pode, sim, ser antirracista, porque a gente vê muitos exemplos na prática disso, com professores que seguem ou que até vão além do que estabelece a lei 10.639 – o que me deixa otimista. O problema são os muitos professores, diretores e escolas que não seguem essa lei.

É claro que os governos também têm responsabilidade. A gente passou por quatro anos de uma gestão de destruição, e a educação foi um dos focos desse desmantelamento. Agora, ainda que num cenário combalido, há uma esperança de que possa haver mudanças. E o primeiro passo seria o cumprimento da lei, com os governos locais e o novo governo federal ajudando nisso.


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