Por Juana M. Sancho-Gil
A utilização de um adjetivo qualificativo, no caso, “excelência”, requer que se explicitem, preliminarmente, os parâmetros de sua definição. Segundo o dicionário, a excelência refere-se a uma “qualidade ou bondade superior que torna algo digno de singular apreço e estima”, em um “grau máximo de bondade, qualidade ou perfeição”.
Se nos atermos a essas definições, a escola, como principal garantia do cumprimento do art. 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948 pelas Nações Unidas, ou é de “excelência” ou não cumpre sua função. Uma vez que só uma escola de excelência pode garantir a consecução do conteúdo dos três parágrafos que compõem esse artigo:
- Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.
- A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e os grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
- Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.
Contudo, algo aparentemente “tão simples” e, ao mesmo tempo, tão distante da realidade de praticamente todos os sistemas educacionais do mundo, continua gerando controvérsias e lutas partidárias. Lutas em que as pessoas menos favorecidas sempre perdem.
A partir do século XIX, com a universalização dos sistemas educacionais públicos, a escola passou a ser entendida como um mecanismo fundamental para a construção das nações e a redução das desigualdades sociais. Hoje, nas sociedades neoliberais e neoconservadoras baseadas no lucro de alguns poucos e na subordinação da grande maioria, a escola começa a entrar na espiral competitiva que as sustenta.
Desse modo, como argumenta a filósofa Adela Cortina (2010), há um embate contínuo entre o modelo de escola que pretende promover uma determinada noção da “excelência” e aquele que se empenha, acima de tudo, em não continuar gerando excluídos. Algo que se costuma apresentar como antagônico, como um dilema insolúvel, como uma situação em que só é possível um ou outro.
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No entanto, o que realmente se confronta é o conceito que cada um defende de “excelência” e a visão do mundo que a fundamenta. A chave estaria “em universalizar a excelência”, explicitando previamente o que significa e se vale a pena almejá-la “tanto na educação como na vida cotidiana”.
De outro modo, corremos o risco de nos ater a uma lista descontextualizada de indicadores sob o rótulo de “qualidade”, elaborados por um grupo de burocratas que tentam “medir” aspectos geralmente irrelevantes, sem interesse real para a vida da maioria dos seres humanos.
A autora refere-se a duas visões da excelência que, no campo da educação, parecem autoexcludentes ou em forte oposição: a que centra seus esforços em “promover a excelência” e a que se empenha em alcançar o desenvolvimento pessoal e social de todos e de cada um dos indivíduos e garantir que ninguém seja excluído.
No entanto, para ela, e também para mim, essas visões não deveriam se autoexcluir ou se opor, mas, sim, procurar potencializar de forma criativa o melhor de cada uma, evitando, em suas palavras, “‘escolhas cruéis’, que sempre deixam para trás pessoas prejudicadas”.
Essa posição é particularmente relevante em um momento de erosão das democracias sociais orientadas ao estado de bem-estar e de crescimento exponencial dos populismos, das plutocracias (i.e., formas de oligarquia em que uma sociedade é governada ou controlada por minorias formadas por seus membros mais ricos) e das “democracias” autoritárias excludentes.
Essa situação implica um deslocamento do sentido de “êxito” e de “excelência”, pois, se na noção de democracia social, justa e redistributiva, o “êxito” está em competir consigo mesmo em proveito de todos, nas correntes políticas vigentes em muitos países parece que o “êxito” e a “excelência” só estão ao alcance de alguns poucos, em concorrência desigual com a maioria.
Isso não é algo novo. Como argumenta a autora citada, na cultura ocidental encontramos o termo “excelência” pela primeira vez nos poemas homéricos.
Na Ilíada ou na Odisseia, o excelente, o virtuoso, “destaca-se por praticar uma habilidade acima da média. […] No entanto, esse sentido da ‘excelência’, embora individual, não o é somente para o próprio indivíduo, mas funciona como uma espécie de modelo para a comunidade, em que cria vínculos de solidariedade que lhe permitem sobreviver diante das demais cidades, sempre em guerra.
Por isso desperta a admiração dos que o rodeiam, por isso conquista a imortalidade na memória agradecida dos seus” (Cortina, 2010, s/p).
Com o passar do tempo e o processo de urbanização da vida, o que se requer são cidadãos excelentes, e não apenas heróis, com virtudes, como justiça, prudência, magnanimidade, generosidade ou valor cívico. A finalidade última dessa busca de “excelência” seria “conquistar pessoalmente uma vida feliz, para construir juntos uma sociedade justa, que necessita de bons cidadãos e de bons governantes” (Cortina, 2010, s/p).
No fim do século passado, a ideia de excelência ressurgiu em diferentes âmbitos. O discurso nem sempre tem a ver com as “medidas de qualidade”, nem com “a ideia de uma concorrência desenfreada na escola, em que os fortes derrotem os fracos.
Vale lembrar-se de que, na luta pela vida, não sobrevivem os mais fortes, mas sim os que entenderam a mensagem do apoio mútuo, os que sabem cooperar, e por isso lhes importa ser excelentes” (Cortina, 2010, s/p). Embora esteja claro que a noção de “excelência” implica uma dimensão comparativa, sempre se é excelente em comparação com algo.
Todavia, em uma sociedade democrática, justa e distributiva, parece evidente que a excelência, o “êxito”, não tem apenas uma dimensão individual. “Consiste em competir consigo mesmo, em não se conformar, em procurar extrair a cada dia o melhor de suas próprias capacidades, o que requer esforço” (Cortina, 2010, s/p), e é um componente fundamental de qualquer projeto vital.
A “excelência” e o “êxito” “não são apenas em proveito próprio, mas também daqueles com quem que se faz a vida, aqueles com os quais e dos quais se vive. Nisso continua valendo a lição de Troia” (Cortina, 2010, s/p).
Para mim, o problema reside em que, hoje, em todos os campos, e, em particular, no da educação, predomina uma visão excludente, padronizada e metrificada da noção de “excelência”. As escolas “excelentes” parecem ser aquelas que acolhem os estudantes com melhores condições para responder às perguntas descontextualizadas de provas, como o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) (Sancho-Gil; Hernández, 2011), ou aqueles que obtêm as pontuações que lhes permitem ingressar nas universidades mais seletivas.
Ou seja, geralmente aqueles que tiveram a sorte de nascer e viver em famílias e sociedades que lhes deram a oportunidade de desenvolver e ir além de suas capacidades.
Sendo assim, qual é o papel da “escola de excelência”? Reproduzir, manter e perpetuar uma sociedade injusta e desigual e, portanto, carente de excelência, para a maioria dos cidadãos? Ou promover uma prática de excelência educativa que permita a cada indivíduo desenvolver todas e cada uma de suas capacidades e promover uma sociedade de excelência?
É somente em uma sociedade que busca a “excelência”, o bem-estar para todos os seus cidadãos, que se pode promover realmente uma escola de excelência.
Penso que esse seria o caso de países como a Irlanda (Ireland — Engaging Actively in Well-Being Promotion), Canadá (The Ontario Well-Being Journey) e Escócia (Health and Well-Being in Scotland: The Responsibility of All), que passaram a dar bastante atenção a esse tema transversal. Como argumentei em um trabalho anterior (Sancho-Gil, no prelo), esses três sistemas educativos públicos optaram abertamente por promover e manter o bem-estar como forma de melhorar não apenas a aprendizagem dos alunos, mas também a vida de toda a população.
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Para eles, as ameaças internas e externas ao bem-estar dos alunos, incluindo a pobreza e outros fatores extraescolares, assim como a prevalência de problemas de saúde mental em crianças e jovens, são questões fundamentais para a educação pública mundial.
Esses sistemas não colocam a responsabilidade da educação apenas na escola, mas também na sociedade em geral e na política educacional em particular. O que buscam impulsionar não é uma noção de bem-estar individual e carente de conflitos, o que tende a resultar em indivíduos narcisistas e com grandes dificuldades para viver em sociedade, mas, sim, um ambiente de responsabilidade e empatia social e cultural que permita o desenvolvimento pessoal em um ambiente de confiança mútua.
Tomando como exemplo o caso da Escócia, parte-se de três princípios: a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Infância; o Getting it right for every children (GIRFEC), uma abordagem do governo escocês de apoio a crianças e adolescentes; e o Currículo para a Excelência. A partir dessas dimensões, e tendo os alunos como principal foco de atenção, os conceitos-chave que se propõem na implementação dessa política na escola buscam garantir que toda criança tenha:
Cuidado: ter um lugar acolhedor para viver, em um ambiente familiar, com ajuda adicional, se necessário, ou, quando isso não é possível, em um ambiente de cuidado adequado.
Atividade: ter a oportunidade de participar de atividades, como brincadeira, recreação e esporte, que contribuam para um crescimento e desenvolvimento saudáveis, tanto em casa como na comunidade.
Respeito: ter a oportunidade junto aos educadores de ser ouvidos e de participar das decisões que os afetam.
Responsabilidade: ter oportunidades e estímulos para desempenhar um papel ativo e responsável em suas escolas e comunidades e, quando necessário, contar com a orientação e a supervisão adequadas e participar das decisões que os afetem.
Inclusão: ter ajuda para superar as desigualdades sociais, educacionais, físicas e econômicas e ser aceitos como parte da comunidade onde vivem e aprendem.
Proteção: estar a salvo do abuso, da negligência ou do dano em casa, na escola e na comunidade.
Saúde: ter acesso aos níveis mais elevados possíveis de saúde física e mental, atenção médica adequada e apoio para aprender a tomar decisões saudáveis e seguras.
Capacidade de êxito: ser apoiados e guiados na aprendizagem e no desenvolvimento de suas habilidades, confiança e autoestima em casa, na escola e na comunidade. Em suma, fica evidente que uma escola de “excelência” para todos e cada um dos estudantes de um país só pode ser promovida em países que buscam a excelência — não para alguns poucos, mas para todos.
Artigo originalmente publicado na Revista Pátio Ensino Médio, Profissional e Tecnológico nº 39, dez./18-fev./19.
Sobre a autora
Juana M. Sancho-Gil é professora da Universidade de Barcelona.
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