“Hoje, todo mundo passa de ano”. Provavelmente, você já escutou essa frase em tom pejorativo em alguma discussão sobre repetência e progressão continuada na educação. O fato é que o tema é complexo e envolve aspectos como qualidade do ensino, evasão escolar e uma visão integral da construção do conhecimento por parte dos estudantes.
O artigo 23 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) diz o seguinte: “A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar”.
Ou seja, segundo a legislação, cada sistema de ensino – seja na rede privada ou pública – pode impor regras para a repetência ou optar pela progressão continuada.
Progressão continuada
Em geral, no Brasil, existem duas formas de organização do ensino: por séries ou por ciclos – a forma mais comum de designar a progressão continuada. A primeira pressupõe que alunos com desempenho insatisfatório sejam reprovados ao final do ano letivo.
Já no sistema de progressão continuada, o aluno deve obter suas habilidades, competências e conhecimentos dentro de ciclos. Estes, por sua vez, duram mais do que apenas uma série ou ano letivo. Geralmente, cada ciclo engloba três anos da formação do ensino fundamental: do 1º ao 3º ano, 4º ao 6º ano e do 7º ao 9º ano. O ensino médio é composto por apenas um ciclo do 1º ao 3º.
Na progressão continuada, não existe a reprovação do estudante por série, mas, sim, avaliações recorrentes e ao final de cada ciclo. Quando há necessidade, o aluno realiza uma fase de recuperação por meio de aulas de reforço, sendo a reprovação uma das últimas alternativas – o que não quer dizer que não ocorra.
De acordo com o último Censo Escolar, em 2020, a taxa de aprovação nos anos iniciais do ensino fundamental (1º ao 5º ano), na rede pública, foi de 98,9%. Já em 2021, esse percentual caiu para 97,3%.
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Repetência x permanência
Dados sobre educação no Brasil compilados no livro “O ponto a que chegamos: duzentos anos de atraso educacional e seu impacto nas políticas do presente”, do jornalista especializado em educação Antônio Gois, apontam que, na década de 1940, de cada 1 mil alunos que ingressavam na primeira série do que era o antigo ensino primário (que hoje seria o ensino fundamental), só 404 iam para o segundo ano.
Ou seja, só do primeiro para o segundo ano, mais da metade das crianças ficavam pelo caminho – considerando-se somente aquelas que conseguiam chegar até a escola.
Desses 1 mil, apenas 20 concluíam todo o ciclo de estudos, de 11 anos de formação. Na década de 1960, mais da metade das crianças continuavam não passando do primeiro para o segundo ano. E as que chegavam ao final do ciclo completo eram 64 (cerca de 6%). Hoje, cerca de 70% das crianças que ingressam no primeiro ano do fundamental chegam ao ensino médio.
“Olhando os dados da educação pública do passado, vemos que o sistema educacional era uma grande máquina de exclusão em massa, sem que isso resultasse em mais qualidade”, afirma Gois, que também é autor das obras “Quatro décadas de gestão educacional no Brasil” e “Líderes na escola”.
Os dados também apontam que a aprendizagem melhorou ao longo dos anos. Por exemplo: a proporção de alunos com aprendizagem adequada de Matemática, em 1995, quando começa a série histórica, era de 19% para crianças no quinto ano. Em 2019, esse número saltou para 52%. Vale ressaltar que a progressão continuada foi citada na LDB pela primeira vez em 1996.
Prós e contras
De acordo com o professor Ocimar Munhoz Alavarse, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), em entrevista ao site Todos Pela Educação, a progressão continuada não prejudica o aprendizado.
Segundo ele, comparando alunos com as mesmas dificuldades, os que progrediram na escola tiveram vantagens sobre os que repetiram, pois puderam seguir com o mesmo grupo de colegas e recuperar parte das habilidades esperadas.
Para Gois, é necessário implementar políticas coerentes e coordenadas “em várias direções”. “Com o sistema de ciclos no Brasil a evasão diminuiu, o que é positivo. Só que uma política sozinha não resolve o problema da baixa aprendizagem”, observa.
De fato, simplesmente acabar com a repetência não vai fazer os alunos aprenderem mais. É preciso que a política de progressão continuada seja bem implementada. Com isso, é possível que a evasão diminua na mesma proporção do aumento da qualidade.
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