Por Jéferson Dantas
O historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) na obra intitulada Globalização, democracia e terrorismo (2007), assinala que a principal contribuição dos historiadores é relembrar o que outros esqueceram ou querem esquecer. Nisso, sempre tomando a devida distância dos registros da época contemporânea, enxergando-os em um contexto mais amplo e com uma perspectiva mais extensa.
Tal alerta nos parece imperioso hodiernamente, tendo em vista a pouca importância dedicada à memória social pelas mídias tradicionais hegemônicas e também por determinados processos de escolarização. Esses processos esvaziam os conteúdos fundantes do conhecimento histórico – ainda mais com a iminente implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e da contrarreforma do ensino médio.
Em suma, vive-se nesse país tempos de interdição das falas discordantes e de costuras discursivas que buscam consensos ou coerções ativas por meio da violência simbólica e física em todas as esferas da vida pública. Assim, ao tratarmos sobre a educação como prática de liberdade, faz-se importante resgatarmos uma importante análise do educador Paulo Freire (1985, p. 12):
“Há limites para o ‘diálogo’. Porque numa sociedade de classes não há diálogo, há apenas um pseudodiálogo, utopia romântica quando parte do oprimido e ardil astuto quando parte do opressor. Numa sociedade dividida em classes antagônicas não há condições para uma pedagogia dialogal. O diálogo pode estabelecer-se talvez no interior da escola, da sala de aula, em pequenos grupos, mas nunca na sociedade global. Dentro de uma visão macro-educacional, onde a ação pedagógica não se limita à escola, a organização da sociedade é também tarefa do educador. E, para isso, seu método, sua estratégia, é muito mais a desobediência, o conflito e a suspeita do que o diálogo.”
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Nada mais atual do que Freire nos aponta. A primeira condição para que um ser humano e, especialmente, um professor possam se comprometer com a ação pedagógica é ter plenamente a capacidade de agir e refletir. Não nos parece tarefa fácil nestes tempos de recrudescimento do ideário fascista no Brasil e em diversas partes do mundo.
Paulo Freire há três décadas ainda avaliava que os seres humanos encontravam-se profundamente feridos como seres de compromisso; um compromisso com o mundo e com a história; com a humanização dos homens. Por seu turno, o sociólogo estadunidense, Michael Apple (1995, p. 6-7), ironicamente, comenta que
“[…] o mundo da fuga de capital, do desemprego, da degradação do trabalho, da desintegração das cidades e comunidades, tudo isso não diz respeito à educação, afinal de contas. Um mundo no qual o racismo está novamente em ascensão, no qual estamos tentando empurrar, tanto ideológica quanto economicamente, as mulheres de volta para o trabalho não remunerado do lar, no qual colocamos nossos idosos em depósitos, esse também tem pouco a ver com a educação. Afinal de contas, a educação é um processo psicológico, um processo inteiramente compreendido através do discurso da aprendizagem.”
Ora, não há como dissociar os processos educativos do mundo do trabalho, assim como não é possível ignorar, especialmente nos dias de hoje, as relações de classe, de gênero e de raça/etnia nos espaços escolarizados e para além dos muros das instituições de ensino. Não por acaso, livros didáticos e perspectivas curriculares são definidas em função de uma determinada classe, ainda que, aparentemente, tenhamos avançado nos últimos anos em relação a uma perspectiva curricular mais includente e plural.
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Talvez devêssemos nos perguntar, sistematicamente, pensando numa prática pedagógica efetivamente libertadora ou emancipadora, do porquê de apesar dos pretensos avanços teóricos no campo das ciências humanas, estarmos diante de uma violência cada vez mais dantesca contra as mulheres, um verdadeiro feminicídio em território nacional; do porquê dos negros ainda perceberem os piores salários e estarem em condições mais evidentes de vulnerabilidade social; do porquê da orientação sexual e da ideia de família serem tratadas com claro acento religioso e divorciadas das mudanças sociais e sexuais de nossa civilização.
Quando participei ativamente da construção da Comissão de Educação do Fórum do Maciço do Cruz (2001-2012) em Florianópolis, Santa Catarina – um conjunto de escolas públicas que atendiam os territórios dos morros da capital catarinense – tinha-se clareza de que precisávamos disputar a hegemonia dos currículos, das práticas pedagógicas, dos processos de avaliação, de concepção de mundo e de ser humano (DANTAS, 2013).
Ainda que tal experiência tenha se findado em 2012, sua herança pedagógica permanece tangível, pois se faz necessário avançar nas relações democráticas nas escolas de educação básica, notadamente no que dedilha a uma gestão que contemple a maior participação política dos sujeitos que fazem parte da escola.
Todavia, a escola é socialmente determinada e, assim, é de salutar importância a disputa hegemônica econômica e social em nível macro, para que as mudanças significativas nos territórios educativos se revelem sustentáveis e duradouras.
Nenhuma prática ou ação pedagógica será libertadora se não tivermos clareza de qual currículo queremos construir ou de qual formação almejamos compor entre as diferentes áreas do conhecimento humano. Estamos diante de decisões e enfrentamentos decisivos. Não há mais o que protelar.
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O mero gerencialismo pedagógico institucional e o legalismo levado às últimas consequências tornam os territórios escolares burocratizados, áridos e degradados do ponto de vista das relações humanas. Logo, construir “espaços de esperança” nas escolas, universidades e nos vários âmbitos da sociedade deve ser também o projeto de uma sociedade libertadora, que recuse e anule o fascismo, caso contrário, a barbárie triunfará, definitivamente. Ainda temos escolhas. E não podemos nos entregar ao fatalismo.
O legado de Paulo Freire
Paulo Freire (1921-1997) iniciou sua trajetória educacional no contexto do período de redemocratização do país, quando a ditadura de Getúlio Vargas (1930-1945) finalmente se findou com a sua destituição por uma Junta Militar. Neste período, Freire lecionava Língua Portuguesa no Colégio Oswaldo Cruz, em Recife, vindo a dirigir o setor de Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria (SESI) entre os anos de 1947 e 1957 (NOVA ESCOLA, 1997, p. 8-9).
Por sua proximidade com os setores progressistas da Igreja Católica, Freire foi alcunhado por alguns estudiosos como um humanista cristão. Moacir Gadotti (1991, p. 78) sintetizou a orientação religiosa do educador da seguinte maneira: “como pensador de esquerda, Paulo Freire [acreditava] que ser cristão não [era] ser reacionário, e ser marxista não significa ser um burocrata desumano. Os cristãos devem rejeitar a exploração”.
Antes de se formar em Direito, Paulo Freire, desde cedo, conheceu o fenômeno histórico das contradições sociais no Brasil. Para ele, “a primeira condição para que um ser humano possa assumir um ato comprometido está em ser capaz de agir e refletir” (1985, p. 16), analisando no interior da realidade dos oprimidos – para utilizar uma expressão notadamente sua –, que o compromisso social não pode vir de uma elite pensante ou de um mecanismo arbitrário jurídico.
Por isso, a ação só se torna consciente e participativa, quando os excluídos sociais são capazes de compreender a sua própria historicidade, a sua própria identidade. Para este educador, de nada vale sabe ler e escrever, se a sua realidade histórica permanecer inalterada.
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O ano de 1979 marcou o retorno de Freire do exílio ainda durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Era o momento histórico propício para que Freire tocasse numa ferida aberta por anos de exploração colonial na América Latina: a questão da identidade latino-americana.
Conforme Freire, o ser alienado, despolitizado, é incapaz de distinguir o ano do calendário do ano histórico: “(…) não percebe que existe uma não-contemporaneidade do coetâneo” (1985, p. 24). É interessante como o autor associa a alienação ao formalismo, ao pragmatismo.
No que tange aos professores, quanto mais estes profissionais forem alienados, descolados de sua práxis, pior será a sua condição eu-mundo; um profissional tão-somente levado pelas circunstâncias e pelo servilismo. Em suma, “quanto mais o homem é rebelde e indócil, tanto mais é criador, apesar de em nossa sociedade se dizer que o rebelde é um ser inadaptado” (FREIRE, 1985, p. 32).
É contra esta legitimação involuntária da divisão social, segundo Chauí (1980), que Freire procura desvelar, apontando que a alienação do indivíduo condena-o a adotar atitudes, hábitos e afetações alheias à sua realidade concreta, ou seja, sente “vergonha de sua realidade. Vive em outro país e trata de imitá-lo e se crê culto quanto menos nativo é” (FREIRE, 1985, p. 35).
Sendo assim, Paulo Freire considerava que os professores para atingirem os seus alunos e compreenderem a sua própria prática social, necessitavam romper com o que denominou de consciência ingênua e atingir a consciência crítica. Na consciência ingênua há uma busca de compromisso; na consciência crítica há o compromisso; numa consciência fanática, uma entrega irracional.
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Desta forma, os professores não devem se entregar às questões educacionais como um missionário que libertará seus educandos das trevas da ignorância. Não cabe ao professor ser um depositário de conteúdos (educação bancária), mas um sujeito histórico comprometido com a sua própria prática social.
Se o professor é um sujeito histórico, ele é um agente de mudança – mas agente de mudança da estrutura social. Neste sentido, “quanto mais for levado a refletir sobre sua situacionalidade, sobre seu enraizamento espaço-temporal, mais emergirá dela conscientemente carregado de compromisso com sua realidade da qual, […], não deve ser simples espectador” (FREIRE, 1985, p. 61).
A ingenuidade diante dos acontecimentos históricos é um dos grandes pontos de discussão de Freire, já que para ele o ingênuo é polêmico, tem forte carga passional e entende que a realidade é estática e não mutável. Já o professor crítico ao se deparar com um fato, tenta se afastar o máximo dos preconceitos, “não somente na captação, mas também na análise e na resposta” (FREIRE, 1985, p. 40-41).
A superação da precariedade formacional no magistério e a consequente subalternidade de sua condição social necessita ser combatida pelos movimentos sociais organizados. A educação de cariz neoliberal artificializa o conflito entre o público e o privado, desqualificando a escola pública, destruindo a autoestima dos professores e estimulando o crescimento da violência física e simbólica no ambiente escolar.
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Sobre o autor
Jéferson Dantas é professor adjunto II no Departamento de Estudos Especializados em Educação do Centro de Ciências da Educação da UFSC (EED/CED/UFSC). Também é membro e pesquisador do Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho (Gepeto).
Referências
APPLE, Michael W. Trabalho docente e textos: economia política das relações de classe e de gênero em educação. Traduzido por: Tomaz Tadeu da Silva, Tina Amado e Vera Maria Moreira. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
CHAUÍ, Marilena de Souza. Ideologia e educação. Revista Educação e Sociedade, São Paulo, n. 5, p. 25, 1980.
DANTAS, Jéferson. Reescrever o mundo com lápis e não com armas: a experiência política e pedagógica da Comissão de Educação do Fórum do Maciço do Morro da Cruz. Florianópolis: Editoria em Debate, 2013.
EDITORIAL. Um educador brasileiro. Nova Escola, São Paulo, n. 103, p. 8-9, jun. 1997.
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Traduzido por Moacir Gadotti e Lilian Lopes Martins. 10 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
GADOTTI, M. Convite à leitura de Paulo Freire. 2 ed. São Paulo: Scipione, 1991.
HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. Traduzido por José Viegas. São Paulo: Cia das Letras, 2014.
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