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A crise na aprendizagem

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A aprendizagem é a tarefa primordial, o objetivo incontornável, meio e finalidade para alcançarmos uma sociedade capaz de superar os atrasos atávicos nos quais estamos enredados enquanto país.

Garantir a oferta de educação de boa qualidade a todos é mudar as coreografias temporais que fazem repetir no Brasil e no mundo as engrenagens massacrantes que alimentam a desigualdade na distribuição de recursos e oportunidades.
A ênfase pede atenção especial para que se consiga beneficiar os empobrecidos e demais excluídos, deixados às margens em processos históricos que duram vários séculos.

Educação de boa qualidade é um fundamento ético, que define e qualifica o mundo do qual fazemos parte. Por se tratar de um fenômeno de alta complexidade, não há respostas simples. Desenhar soluções pede o exame de pesquisas e práticas para apontar caminhos sustentáveis e perenes.

Há algum tempo percebo a necessidade de maior circulação no Brasil de análises em profundidade, de pesquisas, relatórios e propostas de nível internacional. Por isso, me dispus a escrever esses breves ensaios, no intuito de colaborar com a disseminação de informações úteis a educadores, gestores e formuladores de políticas públicas. Pretendo fazê-lo sempre com algum nível de contextualização.

FOTOS: Pedro França/Agência Senado/Divulgação

Minha primeira ênfase é sobre o Relatório do Desenvolvimento Humano (RDH), elaborado pelo Banco Mundial, em sua edição de 2018. A publicação afirma haver uma crise de aprendizagem em nível mundial.

Fiz uma tradução adaptada de alguns trechos que considerei mais relevantes dos dois primeiros capítulos da publicação e os apresento a seguir, entremeados de breves observações.

Escolarização não é o mesmo que a aprendizagem. Quando bem desenvolvida a educação cura uma série de males sociais. Para os indivíduos, promove empregos, ganhos, saúde e redução da pobreza. Para as sociedades, ela estimula inovação, fortalece as instituições e promove coesão social. Mas esses benefícios dependem, em grande parte, da efetiva aprendizagem.

A recente expansão na escolaridade em países de baixa renda é especialmente notável em seu escopo e velocidade. Os anos de escolaridade completados por adulto no mundo em desenvolvimento mais do que triplicaram, entre 1950 e 2010, de 2,0 para 7,2 anos.

As maiores expansões escolares ocorreram no nível primário, levando a um aumento acentuado a demanda pelo ensino secundário. No Ensino Médio, as taxas de matrícula aumentaram acima de 50% em cada região, exceto partes da África Subsaariana. Mas, nesse nível, permanecem grandes lacunas das taxas de conclusão que comparadas pessoas de renda baixa e alta, com forte evasão entre os empobrecidos.
Escolarização sem aprendizagem é um desperdício de oportunidade. Mais do que isso, é uma grande injustiça: as crianças e jovens com os quais a sociedade mais está falhando são os que mais precisam de uma boa educação para ter sucesso na vida.

Qualquer país pode fazer melhor se agir tendo a aprendizagem como o que realmente importa. Isso pode parecer óbvio – afinal, qual o fundamento e a razão da educação? No entanto, mesmo quando a aprendizagem recebe maior apoio retórico, na prática, muitas características dos sistemas de educação conspiram contra o aprendizado.

O RDH argumenta que os países podem melhorar seus resultados quanto a escolas que realmente ensinem se avançarem em três frentes.

Avaliar a aprendizagem – para torná-la um objetivo sério. Significa usar métodos bem estruturados e desenhados para a avaliação de estudantes e, a partir destes, avaliar a saúde dos sistemas de ensino. Não simplesmente como ferramentas para a administração de recompensas e penalização. A mensuração da aprendizagem serve também para destacar processos de exclusão que estejam mascarados, fazer escolhas e avaliar o progresso

Atuar a partir de evidências devidamente pesquisadas – para que as escolas sejam boas para todos os alunos. Evidências sobre como as pessoas aprendem têm crescido nas últimas décadas, inclusive por meio de pesquisas neurológicas, juntamente com um aumento da inovação educacional. Os países podem fazer muito melhor aproveitamento dessas evidências para definirem prioridades para a sua própria prática e inovações.

Alinhar os agentes – que o sistema inteiro funcione para que as pessoas aprendam. Os países devem reconhecer ser improvável que quaisquer inovações em salas de aula tenham impacto significativo, se as barreiras técnicas ou políticas impostas pelo sistema como um todo não apoiam a aprendizagem. Ao conhecerem e levarem em conta esses problemas reais, para mobilizarem todos os que participam e impactam no dia-a-dia da comunidade escolar, os países podem apoiar educadores inovadores em seu cotidiano educativo.

A educação deve capacitar os alunos com os saberes que eles precisam para viverem vidas significativas e saudáveis. Diferentes países definem o que se espera que os discentes aprendam de forma diferente, mas todos compartilham algumas aspirações centrais, consubstanciadas nas diretrizes para elaboração de currículos.

Estudantes em todos os lugares devem aprender como interpretar diversos tipos de escrita, desde passagens de ônibus a caixas de remédio, ofertas de emprego, extratos bancários até obras literárias mais refinadas. Eles têm que entender como trabalhar com números para que possam comprar e vender nos mercados, definir orçamentos familiares, interpretar contratos de empréstimo ou escrever softwares de engenharia.

Se busca o desenvolvimento mental que permita a abstração, a generalização e o ordenamento racional exigidos para a criatividade. Os estudantes precisam das competências socioemocionais, tais como a resiliência e a capacidade para trabalhar em equipe, para ajudá-los a construir e aplicar os conhecimentos fundamentais e outras habilidades.


O que impulsiona as falhas de aprendizado está se tornando mais claro graças às novas análises que demonstram tanto as causas imediatas, como a péssima prestação de serviços que amplifica os efeitos da pobreza, quanto os problemas mais profundos e abrangentes dos sistemas, de ordem técnica ou política, que permitem a persistência da qualidade insuficiente da escolarização.

De novo, a escolaridade não é a mesma coisa que aprender. Muitas crianças aprendem pouco em diferentes sistemas de ensino em todo o mundo, mesmo depois de vários anos na escola. São milhões de estudantes que não dominam, por exemplo, as mais básicas habilidades de leitura, interpretação de textos e pensamento matemático.

Essa crise de aprendizagem reforça a desigualdade e afeta, negativa e especialmente, jovens empobrecidos que mais precisam do impulso que uma boa educação pode oferecer. Não só os estudantes aprendem pouco de ano para ano, mas também os déficits de aprendizagem precoce são ampliados ao longo do tempo. Fere-se a premissa de que os que permanecem na escola devem ser recompensados com progresso constante na aprendizagem, quaisquer que sejam as desvantagens que tenham no início.

Devido a esse lento progresso, mais de 60% de crianças da Educação Básica nos países em desenvolvimento ainda não conseguem atingir a proficiência mínima na aprendizagem. Apesar de não haver uma avaliação única em todos os países, a combinação de dados de avaliações de aprendizagem em 95 países faz com que seja possível estabelecer uma comparação global.

Abaixo da proficiência mínima em matemática, por exemplo, os estudantes ainda não dominaram habilidades matemáticas básicas, seja por simples cálculos com números inteiros, utilizando frações ou medições, ou interpretar gráficos de barras simples. Em países de alta renda, quase todos os estudantes superam esse nível nas escolas.
A maior barreira para aprender é que centenas de milhões de jovens permanecem fora da escola. Em 2016, foi o caso de 61 milhões de crianças com até nove anos de idade, de países com renda baixa ou média baixa, cerca de 10% do total, que se somaram aos mais 202 milhões de adolescentes entre quatorze e dezesseis anos de idade.

A pobreza é um dos fatores que mais colabora com o fracasso escolar, mas outras características também contribuem com as insuficiências da participação escolar, tais como gênero, deficiência física, castas e etnia.
Mas não é apenas a pobreza e os conflitos armados que mantêm crianças fora da escola. A crise de aprendizagem também afeta a permanência. Quando os pais empobrecidos percebem que a educação é de baixa qualidade se mostram menos dispostos a se sacrificarem para manter as suas crianças em uma escola – uma reação racional, diante das limitações que a família enfrenta.

Embora as percepções sobre a qualidade da escola dependam de vários fatores, desde a condição física das escolas até a pontualidade professor, os pais consistentemente citam os resultados da aprendizagem dos estudantes como um componente crítico.

Os déficits de aprendizagem durante os anos escolares refletem em habilidades insuficientes na força de trabalho. A discussão sobre a falta de competências no mundo do trabalho é muitas vezes desconectada do debate sobre a aprendizagem no tempo da escola, mas são duas faces do mesmo problema. O problema não é apenas a falta de trabalhadores capacitados, o mais grave é a falta de trabalhadores aptos a serem capacitados a médio prazo, por lhes faltarem conhecimentos básicos, por exemplo, na leitura de textos ou pensamento matemático.

As habilidades necessárias no mundo do trabalho são multidimensionais e pedem que os sistemas educacionais formem estudantes com muito mais do que apenas a capacidade de leitura, escrita e matemática. As pessoas precisam de competências cognitivas de ordem superior, tais como resolução de problemas complexos. Além disso, eles precisam contar com as condições socioemocionais para estabelecerem relacionamentos e serem capazes de autocrítica. Finalmente, necessitam saber as técnicas para realizar um trabalho específico.

Combater a crise de aprendizagem pede a formulação de diagnósticos sobre as causas imediatas, ao nível da escola, bem como as razões mais profundas e sistêmicas.

Fazer as perguntas certas, às pessoas diretamente envolvidas com o cotidiano escolar, organizar e disponibilizar os resultados de maneira democrática, transparente e aberta colabora para compreender como as escolas estão falhando com os alunos e como os sistemas ou políticas públicas estão falhando com as escolas.

Primeiro, as crianças frequentemente chegam à escola despreparadas para aprender. Desnutrição, doença, pouca atenção parental, baixos investimentos no bem comum e os ambientes adversos associados com a pobreza ou a discriminação – contra mulheres e negros, por exemplo -, prejudicam a aprendizagem na primeira infância. Essas privações têm efeitos duradouros e podem prejudicar o desenvolvimento do cérebro dos bebês.

Trinta por cento das crianças menores de 5 anos nos países em desenvolvimento são fisicamente atrofiadas, o que significa que têm baixa altura para a sua idade, normalmente devido a desnutrição crônica. Nessa situação, mesmo em uma boa escola as crianças carentes aprendem menos e falham mais em avançar nos níveis superiores de formação.
Nesse contexto, os sistemas educacionais tendem a aprofundar as diferenças iniciais. Além disso, muitos jovens empobrecidos não estão na escola.

Em segundo lugar, os professores muitas vezes não possuem habilidades ou motivação para serem eficazes. Os docentes são o fator mais importante a afetar a aprendizagem nas escolas, tanto positiva quanto negativamente, a depender de sua atuação.

Governança democrática e gestão participativa
A maioria dos sistemas educacionais não atrai os candidatos com maior desempenho acadêmico para seguirem a carreira docente.
São princípios necessários para vencer a crise de aprendizagem:

  • Valorizar o professor
  • Remunerar bem esse profissional;
  • Incluir os educadores no planejamento e na gestão;
  • Dar-lhes maior autonomia ao nível da escola, da sala de aula e do sistema educacional;
  • Oportunizar a sua formação continuada com ênfase nas questões didáticas e pesquisas aplicadas, sem abrir mão dos
  • fundamentos histórico-filosóficos;
  • Avaliar sua atuação de maneira democrática, participativa e aberta.

Quem culpabiliza o professor pela crise de aprendizagem provavelmente nunca entrou em uma sala de aula de uma escola pública situada em uma vizinhança marcada pela pobreza e a exclusão social.
O caminho para sanar a doença dos sistemas educacionais inclui descentralizar a definição sobre a aplicação dos recursos, com mais autonomia para a escola – diretores, professores e outras funções locais -, e incluir a comunidade num processo de gestão participativa.

A capacidade de gestão escolar tende a ser menor nos países com os níveis de renda mais baixa. Máquinas burocráticas que consomem a maior parte dos recursos de aplicação não obrigatória são problemas em culturas muito hierarquizadas, onde as políticas públicas apenas tornam-se boas intenções, que não são eficaz e integralmente desenvolvidas.

Falta de autonomia impele a liderança escolar a não se envolver ativamente na ajuda aos professores, seja para resolver problemas, fornecer orientações ou definir metas que priorizem a aprendizagem.
Não só há menos recursos para as regiões empobrecidas como estes são menos eficazmente utilizados nesses contextos. As políticas públicas têm, portanto, o efeito do agravamento das disparidades sociais em vez de oferecer a todas as crianças uma oportunidade de aprender.

Visto de uma perspectiva dos sistemas educacionais, as complexidades técnicas e políticas forçam o desalinhamento dos esforços com a aprendizagem. Às vezes, outros objetivos se impõem, que podem ser prejudiciais, tais como a construção de edifícios escolares precários e sem necessidade real, pois obras novas geram movimentações de recursos financeiros benéficos a alguns poucos que conseguem acesso às verbas públicas.

Mesmo quando os países desejam priorizar o aprendizado, muitas vezes não têm as métricas para fazê-lo. Todo sistema avalia a aprendizagem do aluno de alguma forma, mas muitos não possuem avaliações confiáveis, oportunas ou adequadas para fornecer informações sobre inovações implementadas.

Se o sistema educacional gerar informações comparáveis sobre a qualidade do ensino e da aprendizagem, desde a Educação Infantil até os demais níveis, com possibilidade de identificar o que fez gerar um melhor ou pior resultado nas salas de aula, vai ainda precisar alinhar suas ações para disseminar as melhores práticas e valorizar as escolas que se destaquem positivamente.

A necessidade de coerência torna arriscado emprestar elementos do sistema educacional de outros países. Nos últimos anos, por exemplo, a busca do segredo por trás dos bons desempenhos da Finlândia na aprendizagem com equidade levou a um enxame de delegações visitantes, algo que os finlandeses apelidaram de “turismo PISA”.

A autonomia dada pela Finlândia aos seus professores com elevados níveis de formação não é algo que possa ser aplicado em outros países sem a devida análise crítico-histórica e posteriores adaptações. Se os professores têm pouca ou nenhuma formação na área em que ensinam, estão desmotivados e geridos de forma não bem organizada, dar mais autonomia provavelmente vai piorar a situação.

Sistemas educacionais bem-sucedidos combinam alinhamento e coerência. Alinhamento significa que o aprendizado é o objetivo dos vários componentes do sistema. Coerência significa que os componentes se reforçam mutuamente em alcançar qualquer objetivo estabelecido.

Os desalinhamentos e as incoerências não são aleatórios. Interesses concorrentes levam à escolha de políticas que raramente são determinadas por diagnósticos embasados ou decisões que visam melhorar a aprendizagem. Mais frequentemente, a decisão é tomada pelos mais poderosos atores na arena política, que estão distantes de uma sala de aula.

Os estudantes têm ainda menos poder para participar das decisões, um equívoco amplamente cometido. A participação discente fortalece a cidadania e aumenta a consciência sobre o quão pouco eles estão aprendendo, o que gera mobilização e dinamismo à escola e ao sistema educacional.

Ainda assim, há razões para a esperança. Mesmo em países que parecem presos em armadilhas aqui mencionadas, alguns professores e escolas conseguem fortalecer a aprendizagem. Esses exemplos podem não ser sustentáveis ​​e não terem ainda se propagado em muitas escolas, mas sistemas educacionais dispostos a aprender com essas experiências atípicas podem se beneficiar. Em uma escala maior, algumas regiões dentro dos países empobrecidos são mais bem-sucedidas na promoção da aprendizagem, podendo chegar ao nível de países mais ricos.

Existem pelo menos dois motivos para otimismo. Primeiro, para países inovarem na melhoria dos resultados podem se basear no conhecimento sistemático que ora se encontra mais disponível do que antes sobre o que funciona no nível micro, com alunos, salas de aula e escolas.

Uma série de intervenções, inovações e abordagens têm resultado em ganhos substanciais. Essas abordagens promissoras vêm de muitos saberes novos, métodos pedagógicos, meios para garantir que os alunos e professores sejam motivados, abordagens para a gestão escolar e tecnologias para melhorar a aprendizagem.
Mesmo que intervenções bem-sucedidas não possam ser importadas por atacado em novos contextos, países pode usá-las como pontos de partida para suas próprias inovações.

Em segundo lugar, alguns países implementaram reformas que levaram a todo o sistema educacional ter melhorias sustentáveis na aprendizagem.

Mais recentemente, Chile, Peru, Polônia e o Reino Unido fizeram sérios e sustentados compromissos com a reforma da qualidade dos seus sistemas educacionais. Em todos esses países, a aprendizagem tem melhorado ao longo do tempo, nem sempre de forma constante, mas o suficiente para mostrar que as reformas ao nível do sistema são possíveis.
Os sistemas educativos em Xangai (China) e no Vietnã, assim como na Coréia algumas décadas atrás, mostram ser possível melhorar muito mais do que os níveis de renda poderiam prever, graças a um foco sustentado na aprendizagem com equidade. O Brasil e a Indonésia fizeram consideráveis progresso, apesar dos desafios da reforma grandes sistemas descentralizados com pouca articulação.

Continuaremos no próximo mês. Para quem quiser ter acesso ao RDH, está disponível aqui.


Sobre o autor

Luciano Sathler é PhD em Administração pela FEA/USP, reitor do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix e diretor da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed), além de curador do site Inovação Educacional.

Redação
A redação do portal Desafios da Educação é formada por jornalistas, educadores e especialistas em ensino básico e superior.

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