Ensino Básico

A importância do aprender para além do prédio da escola

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Este é o terceiro de uma série de artigos da nossa colunista Lourdes Atié intitulada Escola e cidade: espaços de aprender a viver.


Escola e cidade: uma das esferas mais profícuas é a cidade, que é reveladora sobre a forma como as pessoas se educam coletivamente, diz Lourdes Atié. Crédito: Pexels.

Escola e cidade: uma das esferas mais profícuas é a cidade, que é reveladora sobre a forma como as pessoas se educam coletivamente, diz Lourdes Atié. Crédito: Pexels.

Considerando o que temos aprendido em tempos pandêmicos, quando a escola saiu do seu prédio e seguiu existindo, sabemos que daqui para frente a escola funcionará no formato bimodal – com aulas presenciais e com atividades virtuais, no prédio da escola ou fora dele.

Mas não podemos esquecer que novos modelos de aprendizagem exigem outra relação com o ensino e com a aprendizagem. Ainda precisamos aprender como educar para a autonomia; não chegamos neste nível.

Sabemos que a posição da escola como o único lugar de transmissão de conhecimento está superada. Vamos aprender cada vez mais – em múltiplos ambientes de aprendizagem. A nova forma de aprender que ora se configura superará as limitações de tempo e espaço como estamos acostumados.

Será preciso assumir que os processos de aprendizagem acontecem na escola, para além dela e ao longo de toda vida.

Hoje, muitas escolas começam a entender que não podem mais assumir para si todas as missões sociais. Isso já é um avanço! Todavia, não basta um entendimento individual, é preciso um esforço coletivo para que, cada vez mais, as cidades sejam espaços educadores.

Mirando para fora da escola: a cidade

Embora vivemos uma situação circunstancial (esperando que assim o seja com a atual pandemia), com muitas indefinições a respeito da abertura ou fechamento das escolas no Brasil, não podemos ficar imobilizados diante de tantas dificuldades.

Este contexto, embora datado, é uma excelente oportunidade de refletirmos sobre o valor que a escola tem para a sociedade e que, por outro lado, pensar que a educação não diz respeito apenas à escola. A educação é um importante motor de transformação social, portanto diz respeito a toda sociedade.

E como a educação se materializa na sociedade, além da escola? Uma das esferas mais profícuas é a cidade, que é reveladora sobre a forma como as pessoas se educam coletivamente.

Pela primeira vez na história a população urbana global ultrapassou a população rural. De acordo com a ONU, 54% da população mundial está nas cidades. No Brasil, este índice chega a 84%, de acordo com IBGE. Mas na maioria das cidades brasileiras sua tradicional função como local de encontro para os moradores foi reduzida, muitas vezes ameaçada e progressivamente descartada, para dar lugar ao aumento do tráfego de automóveis.

De um modo geral, os pedestres gradualmente perdem espaço. Os índices de poluição são altos, assim como ruídos, riscos de acidentes, calçadas estreitas; os espaços de lazer são reduzidos, há pouca natureza, excesso de cimento, sinais de trânsito que não respeitam o tempo necessário para os pedestres poderem atravessar as ruas e por aí vai.

Leia mais: Uma análise de nossas escolas – por dentro

Nos diversos contextos nacionais, é possível constatar que os espaços em que há maior circulação de crianças e jovens é nas periferias as cidades. No entanto, o fato de estarem nas ruas não significa que são espaços cuidados. Ao contrário, é por falta de opção melhor.

Também há uma desigualdade explicita na oferta de equipamentos sociais. Quanto mais pobres os bairros, menor a oferta de equipamentos culturais.

As crianças nas cidades brasileiras, de um modo geral, estão circunscritas a espaços específicos, nomeados de parques infantis ou pracinhas, com seus equipamentos pensados por adultos que, na maioria das vezes, demonstram pouco conhecimento das possiblidades de brincar na infância. Assim como os materiais utilizados nesses espaços. Ainda é farto o uso do plástico em detrimento de materiais ecológicos.

A cidade precisa ser um espaço em que as pessoas se expressem e se exercitem no espaço urbano. Brincadeiras de criança sempre foram parte integrante da vida urbana. Embora existam cidades brasileiras que já estejam atentas para oferecer ruas com segurança para as crianças, ainda temos um logo caminho a percorrer. Ainda predominam nas cidades o conceito de lugares específicos para brincar, tornando esses espaços institucionalizados e delimitados.

Leia mais: Brincar na natureza: por que é tão importante para as crianças

Este é um retrato realista do que tenho constatado nas minhas andanças pelo Brasil. Só que, embora reconhecendo a situação, ela não pode ser motivo para fortalecer o entendimento de que é melhor manter as crianças e jovens o maior tempo possível nas escolas. Ao contrário! É preciso mudar este cenário.

Basta estudar as cidades mais amigáveis aos pedestres para constatar que a melhoria das cidades é resultado de uma equação composta por pressão popular, somadas a fiscalização dos projetos urbanísticos. É a participação, a única forma de transformar as cidades em espaço de ficar e aprender, com segurança e participação.

A cidade é um espaço educador e para isso, é fundamental refletirmos sobre a dimensão humana necessária para qualquer planejamento urbano, como defende o arquiteto e urbanista dinamarquês, Jan Gehl, no livro Cidades para as Pessoas:

“Uma preocupação com a dimensão humana no planejamento urbano, reflete a exigência distinta e forte por melhor qualidade da vida urbana. Existem conexões diretas entre as melhorias para as pessoas no espaço da cidade e as visões para obter cidades vivas, seguras e sustentáveis.”

Segundo Gehl, desenvolver cidades vivas, seguras e sustentáveis é reforçar a função social do espaço da cidade, como o local de encontro que contribui para a construção de uma sociedade democrática e aberta. Este é um desafio não só para o Brasil, mas é global e urgente. Quanto mais os pedestres ocuparem as ruas, melhor será a qualidade da vida urbana.

Gehl assinala que caminhar é o ponto de partida, pois quando caminhamos, a diversidade da vida se apresenta em tempo real e estando percorrendo as ruas que podemos entender a cidade. Pelo caminhar que conseguimos chegar numa participação na vida urbana.

Leia mais: Durante a pandemia: é possível morar em uma cidade e estudar em outra?

Quando viajo pela Europa (e não é esnobação), em qualquer cidade que visito, tem turmas de crianças e jovens caminhando pelas ruas das cidades, às vezes sozinhas e outras como estudantes com a escola. Caminham em segurança e prazer, desfrutam da vida, sem nenhuma professora ou professor aflito controlando o fluxo.

Penso que se as crianças e jovens seguirem vivendo fora da vida da cidade, como acontece por aqui, identificando estes espaços apenas como lugar de passar e, na maioria das vezes dentro de algum transporte urbano, não haverá transformação social possível.

A escola, neste sentido, tem um papel fundamental para apresentar aos estudantes experiências que possibilitem conhecer, viver, se sentindo como cidadãos de direito para exigirem que as cidades recuperem sua dimensão humana. Por onde começa esta mudança? Caminhando pelas ruas da cidade, como reforça a professora argentina Silvia Alderoqui, em Paseos Urbanos – el arte de caminhar como práctica pedagógica.

“Caminhar e passear pela cidade é concebido como um dispositivo criativo. Se trata de “perder-se” pelas ruas da cidade a que se pertence, não como elogio a desorientação, sim com o sentido que tem a palavra perder-se para a infância: perder-se sem riscos, perder-se com segurança, perder-se com imaginação para poder perceber através da contemplação a poesia que nela habita”.

É muito difícil encontrar cidades brasileiras que investem no direito das crianças e jovens de circularem em segurança e de forma autônoma. A proteção às crianças e jovens não consiste apenas em privilegiar sua condição, mas de encontrar o lugar que na realidade lhes cabe como cidadãos, em coexistência intergeracional. Esta é uma perspectiva educadora para as cidades.

Sobre educação e cidades

Brincadeiras de criança sempre foram parte integrante da escola e da cidade. Crédito: Agência Brasil.

Brincadeiras de criança sempre foram parte integrante da escola e da cidade. Crédito: Agência Brasil.

Acompanho o Movimento das Cidades Educadoras há muito tempo. Comecei a me interessar pelo assunto quando constatei que o caminho que as escolas brasileiras seguiam era de dar conta de todas as demandas que a sociedade cobrava delas.

Aquilo representava, na verdade, numa armadilha que fazia com que fugissem da sua função social, insubstituível. O que é? Apresentar o mundo para os mais jovens, para entender que está em suas mãos, melhorar cada vez mais o mundo que vivemos. Essa experiência é coletiva, dialógica, o que faz com que seja insubstituível. Assim, entendendo melhor o papel da escola. Descobri que a cidade poderia ser educadora.

O Movimento das Cidades Educadoras se fortaleceu com a criação da Associação Internacional das Cidades Educadoras que, em 2014, comemorou 20 anos de criação.

Na ocasião, apresentou durante o XIII Congresso Internacional de Cidades Educadoras, sediado em Barcelona, alguns princípios que servem para entender que as cidades podem ser educadoras, focando no entendimento de que a tarefa de educar é mais ampla e vai além da escola.

Leia mais: O que é uma escola hospitaleira. E como formatá-la

Tenho participado dos seus congressos bianuais e estudado o assunto, além de visitar algumas cidades educadoras. Entre outros aspectos é possível destacar:

  • O objetivo permanente é de aprender, trocar, partilhar e, por consequência, enriquecer a vida dos seus habitantes.
  • A proteção das crianças e jovens nas cidades não consiste somente no privilegiar a sua condição, mas encontrar o lugar que na realidade lhes cabe ao lado dos adultos, pela coexistência entre gerações.
  • As cidades educadoras agem desde a sua dimensão local, enquanto plataformas de experimentação e consolidação na plena cidadania democrática para promover uma coexistência pacífica.

São muitas as experiências pelo mundo que demonstram que a escola deve considerar a cidade como um espaço de aprendizagem em condições de igualdade. A cidade é direito e pode ser currículo.

São experiências diversas que se complementam e se enriquecem mutuamente. Atualmente são 510 cidades pelo mundo que detém o título de Cidade Educadora, sendo:

  • Na África, em 05 países, com 08 cidades educadoras.
  • Na América, em 09 países, com 77 cidades educadoras.
  • Na Ásia – Pacífico, em 06 países, com 29 cidades educadoras.
  • Na Europa, em 14 países, com 396 cidades educadoras.

Atualmente o Brasil tem 22 cidades educadoras. Porém, várias delas confundem o conceito de educação integral com cidade educadora. É importante esclarecer que somente o Brasil articula equivocadamente o conceito de educação integral, que se refere ao universo dos sistemas educativos, com cidades educadoras, que não restringe a educação à escola.

Leia mais: Um olhar sobre a qualificação dos professores no Brasil

Muitas cidades brasileiras também centralizam sua atuação enquanto cidade educadora, nas secretarias de educação, quando seus projetos deveriam estar presentes em todas as secretarias municipais, garantindo a participação ativa dos cidadãos nas decisões dessas secretarias e comunidade em geral. O Brasil ainda tem um longo caminho para aprender a fazer cidades verdadeiramente educadoras.

Na América Latina, três cidades são destaque: Rosário, na Argentina e Medellín e Bogotá, na Colômbia. São cidades que avançaram muito e são exemplos de participação comunitária e de sentido de pertencimento, onde crianças e jovens participam em igualdade de condições como todos os cidadãos, dos canais decisórios da cidade.

Em Rosário, por exemplo, cidade que tive oportunidade de visitar duas vezes e que também participa da Red Internacional de la Ciudad de los Niños, além da cidade ser planejada com diversos espaços públicos gratuitos de convivência, intergeracionais em que a arte e a ciências estão em diálogo permanente, existem comitês de crianças de 07 a 12 anos e de jovens de 13 a 17 anos, eleitos democraticamente, que atuam de forma deliberativa, apresentando projetos ou defendendo projetos na câmara municipal, junto aos vereadores (concejal).

Antes da pandemia, esses comitês, mensalmente, despachavam com a prefeita (intendente), acompanhando projetos relacionados a melhoria da cidade como um todo, e não apenas para eles. Essas crianças e jovens se relacionam com governantes de forma cidadã, defendendo ideias e aprendendo a participar na vida da cidade.

Este exemplo demonstra que as crianças e jovens argentinos não estão brincando de fazer política. Estão atuando como cidadãos, conscientes dos seus diretos e deveres. São sujeitos inseridos na vida social, entendem e vivem a cidade para além do livro didático e dos estudos do meio. Sua participação não “conta ponto” para algum trabalho escolar. São cidadãos. Nada impede que possamos nos inspirar e trabalhar para melhorar as cidades brasileiras.

Há muitas experiências internacionais e algumas nacionais nas quais o Brasil pode se inspirar para que possamos começar a agir de forma educativa, para além da sala de aula, porque nossas crianças e jovens também merecem!

Leia mais: Como aprender matemática, geografia e física ao brincar de pipa

A educação, no sentido da Carta das Cidades Educadoras e baseada na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), tem por objetivo permanente “de aprender, trocar, partilhar e, por consequência, enriquecer a vida dos seus habitantes”. Uma cidade educadora defende como prioridade, ocupar-se com crianças e jovens para que possam usufruir da cidade em igualdade de condições. Se entende como um sistema complexo, de participação de todos os cidadãos no espaço público, nos bairros e de forma comunitária.

Uma cidade educadora vai além da educação formal e pode ser uma grande aliada da escola. A responsabilidade dos governos locais é no sentido de garantir o desenvolvimento de todas as potencialidades educativas que a cidade contém. Todas as instâncias sociais participam em redes colaborativas, proporcionando troca de experiências e desenvolvimento de todos os cidadãos, tendo por base o direito fundamental à educação. Neste sentido, os estudantes não ficam aprisionados na escola, mas vivem a cidade por meio dos seus múltiplos espaços educadores.

Olhar a cidade no seu sentido educador, significa construir e fortalecer também a identidade cultural da cidade, como base na luta pela qualidade de vida. Afinal, a cidade é a síntese da relação do indivíduo com o meio, que tem como ponto de referência sua identidade, autoestima e sentimento de pertencimento.

Leia mais: Escola e cidade: espaços de aprender a viver

Lourdes Atié
Lourdes Atié é socióloga com pós-graduação em Educação pela FLACSO, na Argentina, diretora da empresa Ideias Futuras e membro da comissão editorial da Revista Pedagógica Pátio – Ensino Fundamental e Ensino Médio. E-mail: lourdesatie@terra.com.br

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