O Conselho Nacional de Educação (CNE) pode alterar as diretrizes curriculares das graduações de engenharia do Brasil. A ideia já vem sendo discutida há mais de um ano e pretende tornar mais atrativos os cerca de 4 mil cursos disponíveis no país – 70,5% deles pertencentes à rede privada.
A proposta foi elaborada em conjunto com a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Associação Brasileira de Educação em Engenharia (Abenge). A previsão inicial era de que o novo marco regulatório fosse aprovado em agosto – mas setembro chegou e até agora não há decisão.
Caso aprovada pelo CNE, a proposta de reestruturação dos cursos de engenharia deve ser encaminhada para homologação no Ministério da Educação (MEC). Depois, as instituições terão um ano para fazer a adequação de seus currículos. A esperança com a “reengenharia” é elevar a empregabilidade dos egressos e, de quebra, melhorar a competitividade do país.
A razão das mudanças
Os dois maiores problemas dos cursos de engenharia dizem respeito à carga teórica elevada e a desconexão com a prática. Nesse sentido, sob pena de parar no tempo, o Brasil poderia se espelhar em países desenvolvidos da Europa e os Estados Unidos, onde as universidades buscam fortemente a ligação entre a academia e o mundo real. É o caso da Faculdade de Engenharia Franklin W. Olin, em Massachusetts.
Inaugurada em 1997, a IES sempre buscou inovações que fugissem das aulas expositivas. Se em algumas universidades os alunos passam os primeiros semestres envoltos em pré-requisitos, como matemática e ciências, na Olin é diferente. Isso porque grande parte do currículo é baseado em projetos – que iniciam no primeiro ano do curso.
Como consequência, a Olin registrou maior fluidez e coesão entre os engenheiros e as exigências do mercado de trabalho.
Rafael Lucchesi, diretor de Educação e Tecnologia da CNI, afirmou ao jornal Correio Braziliense que esses exemplos são importantes. Não apenas no contexto dos estágios, mas também para que “não se perpetue um problema que temos aqui [no Brasil], onde os empregadores dizem que demoram até dois anos para qualificar engenheiros formados”.
Para que consigam uma posição no mercado, no entanto, os alunos também precisam persistir no curso. Na comparação com a média das demais áreas, a evasão na engenharia é duas vezes maior: 22% dos estudantes abandonam o curso. Em direito, a taxa de evasão é de 17%; medicina, 8%.
Em 2016, o Brasil registrou 1 milhão de matrículas. Desse total, foram 306 mil ingressos para apenas 100 mil concluintes. No meio do processo, 148 mil matrículas foram trancadas – os dados são da pesquisa Sinopses Estatísticas da Educação Superior.
Para Rafael Korman, doutorando em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), o alto número de desistência acontece em virtude da grade obsoleta dos cursos. “As universidades dão o máximo de conhecimento técnico, mas o mercado quer mais do que isso”, diz.
Para aumentar o índice de empregabilidade e oferecer um bom emprego aos formandos, segundo ele, é preciso somar três fatores: o conhecimento técnico, as competências socioemocionais e o networking. Algo que, afirma, tem ficado a desejar entre as instituições de ensino superior brasileiras.
Modelo conservador
A formação extremamente fragmentada desmotiva parte dos alunos. O lado prático e experimental costuma ficar para os semestres finais, enquanto os primeiros anos são focados na teoria. “São disciplinas puras e sem contexto”, diz Korman.
O engenheiro ressalta que as propostas inclusas na reestruturação dos cursos de engenharia são difíceis, lentas e devem começar pelos professores. “Os cursos têm nichos de poder muito fortes, com professores que fazem seus próprios horários e que estão acomodados”, afirma Korman. E é nessa acomodação que as IES perdem cada vez mais estudantes.
Na reengenharia, o ensino ligado a competências se destaca como possível ponto de partida para revolucionar esse cenário. A ideia é deixar para trás as aulas cheias de conteúdos específicos e técnicos. No lugar delas entra em cena o desenvolvimento de habilidades exigidas pelo mercado de trabalho. Para isso, o uso de metodologias inovadoras de ensino e o fortalecimento de parcerias com empresas estão entre as alterações propostas.
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“Há uma falta de qualificação que está direcionada à postura profissional”, diz Ane Lise Dalcul, coordenadora de engenharias e arquitetura da Sagah.
Segundo ela, não basta ser apenas um profissional com boa técnica: é preciso saber desenvolver um trabalho em equipe e de liderança, trazendo o que deve ser feito, solucionando problemas e apresentando novas ideias. “Hoje, o mercado não quer um profissional esperando que lhe digam o que e como fazer.”
Para Vanderli Oliveira, presidente da Abenge, os cursos têm de formar o chamado “engenheiro empreendedor”. Isso só é possível se, ainda na graduação, os alunos forem desafiados a lidar com situações mais realistas e problemas típicos do mercado. “Quem arruma emprego para engenheiro é engenheiro. É preciso ter mais engenheiros abrindo empresas”, afirmou ao Estadão.
Momento certo
A última revisão nas diretrizes das engenharias foi feita há 16 anos. Segundo a orientação, a carga horária mínima para todas as engenharias é de 3,6 mil horas – totalizando cinco anos de graduação. A nova proposta coloca essa exigência apenas como “referência”, abrindo margem para a redução no tempo de curso.
A reestruturação dos cursos de engenharia também não estabelece carga horária mínima para cada conteúdo. Atividades que unam os campos teóricos dos práticos, projetos multidisciplinares e a inclusão do empreendedorismo são as orientações-chave.
Ane Lise Dalcul salienta que a proposta também desafia o mercado a caminhar junto do processo. “O mercado é aquele que exige, mas que não quer dar o emprego. É aquele pede experiência, mas que não dá a oportunidade da experiência”, diz.
Para ela, a partir do momento que o aluno está no mercado, as empresas têm de mostrar a realidade da profissão e cobrar das universidades esse processo de ensino e aprendizagem.
Há quem acredite que os principais desafios estão nas próprias universidades. Isso porque elas não teriam estrutura interna para sorverem tantas mudanças. “Uma coisa é exigir que as universidades façam algo diferente, outra coisa é mudar toda a estrutura interna das instituições de ensino e fiscalizar”, diz Rafael Korman.
As mudanças não afetam só a grade curricular, mas toda a forma de ensinar e de aprender. Korman exemplifica que a criação de uma disciplina de empreendedorismo ou inovação, só para mostrar algo novo, é arriscado. “É como um ensino de ‘caixinha’. Vai mexendo uma ali, outra lá, coloca uma, tira outra. Para quem olha de fora, está tudo diferente”, diz. “Mas as caixinhas são as mesmas.”
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