Aprovado na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, o projeto de lei nº 5.414/16, que autoriza a criação de cursos EAD na área da saúde, segue para votação no plenário no início de 2018. Enquanto isso, nos bastidores, conselhos federais e instituições de ensino travam uma batalha para aprovar um texto dentro das necessidades do mercado.
O projeto de lei aprovado na votação foi protocolado no ano passado pelo deputado Rodrigo Pacheco (PMDB-MG), e visava proibir cursos de saúde a distância. Entretanto, após as deliberações da Comissão de Educação, o relatório do deputado Átila Lira (PSB-PI) prevê a permissão para esta modalidade de graduação.
Desafios da Educação conversou com Elizabeth Guedes, vice-presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares (ANUP). Na conversa, a executiva explica a importância da modernização do setor para a melhor integração entre consultórios e sala de aula e é categórica ao afirmar: “é preciso encontrar um ponto de equilíbrio”.
Na academia, especialmente em cursos de ponta, os cursos EAD e híbridos parecem fazer parte de uma questão mais aceita. Júlio César Martins Monte, coordenador do curso de medicina do Hospital Albert Einstein afirma que “não adianta querer que o aluno chegue preparado em sala se ele só fica em sala”. Por que o projeto é tão polêmico?
Primeiro, acho que há um desconhecimento por parte dos conselhos do que estamos chamando de “ensino híbrido”. Usei esse termo numa audiência pública da comissão de educação e quase me jogaram uma cadeira. Primeiro, tem o problema político, ideológico, que não tem vinculação com academia e projeto pedagógico, é o que se discute hoje no congresso, desvinculado do dia a dia das escolas.
Conselhos profissionais, e digo com muito respeito, tem tentado ao longo dos anos aumentar a influência sobre a regulação do ensino superior, o que é ilegal, porque a constituição não prevê que órgãos profissionais se ocupem de regular o ensino.
A questão deles é a fiscalização da profissão. O fato de terem profissionais formados não os torna habilitados a fazer discussões pedagógicas, podem discutir o modelo de saída, o que o aluno precisa quando se torna um egresso. Há uma discussão artificial de que seriam os conselhos contra mantenedores.
Conselhos são formados por profissionais que em grande parte saíram das nossas universidades, já que 80% dos alunos estão na rede privada. O sujeito que está lá na ponta criticando foi meu aluno, e ele está satisfeito com seu próprio ensino. Mas a formação que ele teve na década de 70, 80, foi totalmente diferente da década de 40 e é completamente diferente de 2030. Já existem simuladores de operações cirúrgicas em 3D. Faço intervenções num organismo que simula o organismo humano que é um organismo em realidade aumentada.
A primeira vez que o aluno pega o paciente deve ser precedida de muita simulação prática. O exemplo que as enfermeiras adoram dar é o do cateter na uretra: se der a um aluno um modelo e ele manipular desde o primeiro período, tenho certeza que quando pegar a um laboratório, a chance de colocar o paciente em risco é diminuída.
É uma discussão artificial. Ela foi montada, claro. A Câmara é o parlamento, o lugar do povo, é na casa que se discute, mas o que estamos tentando é trazer a discussão para o campo prático. Não adianta fazer discurso em época de eleição. Aí enchem o plenário com órgãos, pessoa batem tambor, vão com leques, isso tudo eu acho que é uma atividade meramente política de quem tem uma eleição para ganhar ano que vem.
O grande problema é como vamos debater entre os conselhos, as escolas e os deputados para encontrar o ponto de equilíbrio. O que estamos discutindo, e os conselhos federais concordam, é que não adianta dizer 10% para um, 20% pra outro, o projeto pedagógico é que vai definir como será o curso. Eu vou ser atendida pela enfermeira que eu formo. A mesma coisa farmacêutico, fisioterapeuta. Mas existe um conjunto que possa entregar usando a tecnologia. Vou tirar o projetor e botar na frente do aluno uma coisa muito real, cognitiva, interessante.
É preciso entregar alunos que sejam úteis e que formam um profissional de verdade. O que está acontecendo na câmara é uma discussão muito saudável, boa, no lugar correto, mas já há um acordo entre o MEC, os conselhos federais, os deputados e os mantenedores de que precisamos nos sentar juntos e discutir esse assunto de uma forma adulta, menos ideologizada e mais focada no interesse do aluno e do paciente.
Segundo o MEC, se na Diretriz Curricular de um curso estiver prevista atividade presencial, como prática e estágio, o curso, mesmo sendo de EAD, deve oferecê-la. É o caso de farmácia e de outros cursos da área de saúde. Me parece que esse modelo é muito mais uma inversão da sala de aula do que EAD propriamente dito?
Trocar a sala de aula por laboratório e o professor repetindo matéria por software são uma tendência da educação do século XXI. Não com professor colocando matéria estática, mas interpretando o conteúdo e sendo tutor da turma, uma coisa muito melhor do que ficar decorando manuais enormes. Não adianta querer prender a história com projeto de lei. Até nessa discussão tem aquela história de complexo de vira-lata: por que Harvard, MIT, todas as universidades de ponta – e a escola do Hospital Albert Einstein está incluída – utilizam EAD e nós não?
A resposta é: aqui no Brasil é diferente. Por que os nossos alunos têm que estar sujeitos sempre ao pior? Por que não podem ter acesso a uma educação do século XXI? Considero uma discussão artificial, no local certo, mas de uma forma equivocada pelos autores do projeto.
Muitos dos cursos EAD adotam o chamado modelo nacional de acesso, com uma entrega padronizada e preços baixos. Como garantir o diferencial de qualidade que os cursos de saúde necessitam?
Eu estava lendo o Decreto 923, que fala justamente das novas regras de regulação e supervisão. O Ministério quer ter o setor bem regulado, e nós achávamos que é bom que seja, o MEC também avança nas possibilidades de intervenção.
Como a qualidade avança? Fechando quem não consegue atingir os indicadores de qualidade. Atendendo denúncias que são feitas. O Brasil é um país com muito tráfico de influência, tem sempre um amigo com quem conversar para resolver um problema. O MEC tem que ser enérgico, tomar atitudes fortes.
Instituições pequenas que funcionam com nota 1 ou 2 precisam ser ajudadas. Grupos econômicos grandes com notas baixas precisam ser fechadas. Represento grandes grupos como Estácio, Kroton, que trabalham para ter qualidade.
Em um mercado tão dinâmico, com concorrência tão acirrada, é preciso que as pequenas instituições sejam ajudadas. MEC tem a mesma régua para todo mundo. Não pode fazer uma visita a uma universidade, depois uma visita para uma faculdade ao lado e botar a mesma régua para medir. Deveria ter instrumentos que incentivassem e ajudassem a sobrevivência das pequenas e médias.
Deveríamos ter distritos educacionais, com 1 ou 2 mil estudantes, onde se pudesse fazer consórcios e dividir professores, dividir bibliotecas, se tiver na mesma categoria acadêmica. Se não proteger os pequenos, a tendência do Brasil de encarcerar o ensino nos grandes polos vai ser consolidar. O que garante a qualidade, resumindo, é isso, é olhar a diversidade, regionalidade, e não ficar perseguindo todo mundo dizendo que a iniciativa privada não tem qualidade.
O setor particular de ensino superior é o que tem mais avançado em qualidade. Não vejo ninguém falando mal de hospital privado. Educação tem um preconceito quando nós estamos prestando um trabalho muito importante. O aumento do salário médio de um aluno que se forma é um dos maiores do mundo.
O que se faz com o ensino particular mostra um Brasil atrasado, preconceituoso, que persegue todo mundo que é privado e tem sucesso. Se tiver fora da média, ninguém pode botar nota no diploma porque imagina que aquele aluno que tirou 2. Não premia a meritocracia com essa conversa de que não pode ganhar mais. No meio disso tudo tem essa pasta, essa espuma, o preconceito contra o ensino particular.
O ensino público básico é muito ruim, mas ninguém elogia o privado. O pobre que saiu do ensino básico e entra na rede particular não precisa de ajuda. É um país muito atrasado, é muito difícil colocar uma discussão madura. Essa semana na comissão de educação não gostava do Ministro e falou mal dos médicos. Conselhos são muitos sérios, a presidente dos conselhos federais de saúde é muito séria, uma enfermeira, e estamos muito animados e vamos resolver essa questão.
Isso abre oportunidade para novos cursos, mais inovadores?
Sim. Nas áreas que não são fortemente reguladas o número de novas profissões explodiu. A primeira escola de gastronomia tem uns 20 anos, nasceu em São Paulo. Hoje na TV só tem gente ensinando a cozinhar. Todas as profissões de moda, design, games, estética, tudo que não está sob forte regulação, explodiu. Nós não temos cursos nvos porque medicina no Brasil é medicina, enfermagem é enfermagem, quem pode aplicar injeção, quem não pode.
O Einstein tem uma escola de enfermagem totalmente integrada ao hospital e aos médicos. Estão formando as enfermeiras porque precisam pra eles, e o excesso eles mandam para o mercado. A gente não tem nem estudo de caso. O setor inteiro de educação vai tomar um curso. A novidade disruptiva da educação vai vir da tecnologia.
As aulas presenciais talvez sejam na própria casa do estudante. Acho que vai acontecer com as escolas o que está acontecendo com a televisão. YouTube surgiu e mudou tudo. Os índices de audiência da TV aberta baixaram muito. Fátima Bernardes com 7% de audiência e 93% fora. O que aconteceu foi a chegada da internet, a capacidade de aprender, de assistir coisas através dela, todo mundo migrando para canal de YouTube. A escolha sobre o que consumir é direto com a pessoa que assiste, e ainda por cima mais barato.
Essa migração acontece em todas as áreas e vai acontecer na educação. Já está acontecendo em centros de ponta, como o Einstein. Já existem escolas de enfermagem fora do Brasil que são 100% online. Não adianta lutar contra o futuro, ele vai chegar. O sol vai nascer, não adianta ficar de luz apagada com a cortina fechada. Toda a inovação dos cursos virá quando as corporações entenderam que o compromisso não é com o curso que eles fizeram, mas com o futuro da profissão deles, e não é olhando para trás que vão evoluir.
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