Por Cristina Davila*
Brincar é direito fundamental de toda criança, independente de cor, raça, religião ou origem social. A legislação brasileira reconhece explicitamente este direito tanto na Constituição Federal (1988), quanto no estatuto da criança e do adolescente (ECA). Mas será que as crianças têm ainda esse direito garantido?
Esta questão se encontra implícita numa pesquisa em desenvolvimento nas cidades de Salvador e Jequié na Bahia, a partir de parceria entre pesquisadores brasileiros da universidade federal da Bahia (UFBA) e franceses da universidade paris 13°. De seus estudos tem sido confirmada a importância do brincar livre através da ampliação de tempos e espaços no ambiente escolar.
Uma das premissas defendidas pelos pesquisadores é de que as crianças ao brincarem livremente com objetos não estruturados os transformam em brinquedos e criam suas próprias brincadeiras. Com base nisso, fizeram em 2016 a implantação do projeto baú brincante, nas cidades de Salvador e Jequié na Bahia.
O projeto teve como ponto de partida a inserção de uma grande caixa de madeira contendo materiais não estruturados e colocada à disposição das crianças de 06 a 10 anos, em escolas públicas de educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental.
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É por meio do brincar que a linguagem, o imaginário, a fantasia e criatividade são desenvolvidos naturalmente. É, também, através do brincar livre que as crianças vivem uma experiência criativa na relação com o mundo, pois se trata de uma ação que as motiva a explorar, experimentar e a recriar.
Porém, a desvalorização do movimento natural e espontâneo da criança, principalmente nos primeiros anos do ensino fundamental, em virtude da hipertrofia do modelo racionalista de ensino, praticamente retira de cena a ludicidade do espaço escolar.
A complexidade do problema acerca da brincadeira espontânea neste segmento de ensino está associada a diversos fatores, tais como: a inserção da criança de seis anos no ensino fundamental de nove anos, a dicotomia do aprender a ler e escrever e as aprendizagens informais e a falta de reflexão sistemática de dirigentes educacionais, de pais e professores sobre a importância da brincadeira livre no desenvolvimento infantil.
Com isso, o lugar e o tempo do brincar vão se restringindo à “hora do recreio”, assumindo contornos cada vez mais definidos e restritos em termos de horários, espaços e direcionamento para “aprender algo”, não possibilitando as interações entre pares, a expressão de movimentos e criações brincantes próprias nessa fase da vida.
A mesma problemática pode ser verificada para além dos muros escolares. Principalmente em bairros periféricos, a crescente violência urbana, a falta de tempo dos pais e de muitas crianças que trabalham e o tempo diminuto dos recreios escolares são provas incontestes de que as crianças tem brincado pouco.
O baú brincante é um “artefato brincante” (LOPES, 2018), que no seu interior contém diversos materiais não estruturados de recuperação como: cordas, tubos de papelão, tecidos, papelão, roupas e sapatos de adultos, mala, bolsas, pneus, teclados e computadores, telefone e fantasias, para que as crianças produzam seus brinquedos e brincadeiras.
Esses materiais são recursos valiosos para estimular a criatividade e a imaginação infantil, gerando atividades que estão para além do prazer que proporcionam, funcionando como agentes auxiliadores do processo de desenvolvimento e aprendizagens sociais. É no brincar livre que a criança experimenta a essência do ser/estar junto, se desenvolvendo e expressando sentimentos e conhecimentos essenciais e singulares da vida cotidiana.
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Uma cabana, um esconderijo, uma casa, um escritório – formas grupais de brincar marcados por certa continência e proximidade afetiva. Cenas do cotidiano criadas a partir de materiais que imitam a vida cultural e que sugerem um enraizamento social (PIORSKI, 2016).
O projeto dentro das escolas
A experiência realizada em Salvador, na escola municipal governador Roberto Santos (“Escola Robertinho”) foi coordenada pela professora da universidade do Estado da Bahia, Antonete Xavier e teve como articuladora local a professora de Artes Iaçanã Simões. Os resultados da pesquisa realizada denotam aspectos relevantes.
“O baú brincante foi instalado revelando consideráveis interações sociais e afetivas. Ao acompanhar o projeto, foi possível reconhecer – pouco a pouco e nesta ordem – a euforia, a alegria, o amadurecimento, o engajamento, a responsabilidade e outros tantos atributos”, afirma Simões.
O uso contínuo do dispositivo lúdico revelou mudanças comportamentais nos alunos. Na manipulação inaugural do equipamento, era evidente o uso violento que as crianças faziam dos objetos oferecidos, o que à primeira vista, pareceu desestimulante e desalentador. Porém, com pequenos ajustes e frequência sistemática, avanços aconteciam a olhos vistos, assegurando o bom resultado das aprendizagens proporcionadas pelo brincar, esmaecendo a violência do começo.
Os objetos até pouco tempo utilizados para agredir, retomaram a função precípua de brincadeiras criativas, inusitadas, coletivas e divertidas. Pontualmente, havia, sim, certa ressurgência de agressão, porém, mais e mais espaçadas, dando lugar às interações lúdicas e pacíficas. As composições emergiam da interação livre e espontânea entre as crianças, que traziam repertórios pessoais, culturais e afetivos no intercâmbio social.
Os estudantes ampliavam paulatinamente aspectos relativos à coletividade partilhando os artefatos. Atingiam organização e independência pelo acordo da utilização e concepção de estratégias – filas e tempo para que cada um desfrutasse da brincadeira – externando autonomia e respeito mútuo.
Objetos que inicialmente eram levados para casa, permaneciam no baú. Inclusive as próprias crianças ampliaram a coleta e passaram a contribuir com novos materiais não estruturados, comprometidos que se sentiam com a noção de colaboração, resultado direto do entendimento da proposta.
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As qualidades e habilidades oriundas do conteúdo lúdico – criatividade, alegria, diversão, solidariedade, amizade – fizeram eclodir no espaço escolar a assimilação do brincar como componente considerável para a aprendizagem e a humanização das relações sociais, o que inclui as permutas afetivas.
As crianças também são testemunhos exemplares do projeto na “escola Robertinho”. Passaram a protagonizar o movimento de ir ao baú, de levar materiais para a sua composição. Engajamento, sensação de pertencimento, entendimento da proposta e internalização das regras do brincar foram a tônica dos processos proporcionados pela ambiência lúdica no baú brincante.
Algumas evidências nos mostram como foram significativas as vivências das crianças. A fila de espera para a entrada nas salas de aula acontecia no mesmo ambiente onde estava implantado o baú brincante. Havia uma grande expectativa para ir ao baú no dia reservado a cada classe. Os encontros casuais pelos corredores da escola com as pesquisadoras e principalmente com a professora de artes era acompanhada com a pergunta: “hoje é dia de baú?”
Em uma atividade em sala de aula, no espaço do livro didático tinha uma solicitação para que a criança desenhasse o lugar da escola que mais gostava, E grande parte dos alunos da turma do 1º ano da professora Adriana Cirino, da escola Robertinho, desenharam o baú brincante com a casinha, imagens dos objetos e crianças brincando.
Ao longo dos momentos e com a frequência da ida das crianças ao baú, ficou evidente o quanto esse momento reverberou na melhoria das relações naquela escola. O respeito entre pares, a colaboração, co-criação de estratégias e modos diversificados e criativos de brincar com o mesmo objeto. Descobertas a cada visita, implicação, criatividade e alegria, são palavras que sintetizam a experiência na “Robertinho”.
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Na escola lagoa dourada, em Jequié Bahia, o experimento foi coordenado pela profa. Marilete Cardoso, que diz ser perceptível a alegria das crianças com o baú brincante.
“Encantamento. Esta é a palavra que remete a experiência com o projeto na escola Lagoa Dourada. O brincar livre transforma as fisionomias das crianças, pois é perceptível muita magia, encanto e alegria durante as brincadeiras. Eu não consigo dissociar o brincar livre dessas palavras”, diz Cardoso.
Ao serem indagados sobre o que o baú brincante representava para eles, os alunos responderam: “fonte de criatividade, criar, importante, esperança, felicidade, diversão, carinho, amor e harmonia”. Tudo isso as crianças encontraram nos 40 minutos de liberdade todas as quinta-feira naquela escola.
A imaginação e a criatividade ganham vida e forma na hora do brincar livre das crianças. É magnífico testemunhar como rapidamente o pátio da escola se transforma em vários cenários e os meninos e meninas entram em cena protagonizando cada um a sua história ou dividindo a mesma cena.
Em consonância com as ideias defendidas por Friedmann (2015). Criar espaços como brechas possíveis a fim de que as crianças vivam plena e significativamente suas infâncias. Além de oferecer possibilidades para que elas vivam de forma inteira e entregues à espontaneidade do brincar, para que a essência particular de cada uma possa se manifestar, se reconhecer e conhecer o outro nas interações brincantes.
Por essa razão, é importante que as instituições escolares oportunizem meios para que as crianças produzam suas brincadeiras coletivamente. Ao brincarem livremente elas aprendem a interagir com o outro, e entre pares desenvolvem habilidades e aprendizagens que nenhuma proposta formalizada pode ensinar. Isto é, o brincar de modo espontâneo possibilita a vivência da cultura lúdica e a expressão plena da infância criativa em suas incontáveis aprendizagens.
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Sobre a autora
Cristina Maria D’Ávila Teixeira é professora titular de didática da Universidade Federal da Bahia. Pesquisadora do grupo GREAS-CEAQ (sorbonne, Paris-descartes) e coordena o grupo de estudos e pesquisas em educação, didática e ludicidade (Gepel).
Referências
BRASIL, Constituição Federal. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 2010.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jul. 1990.
BROUGÈRE, G. A criança e a cultura lúdica. In: KISHIMOTO, Tisuko (org.) O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira, 2002.
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D’ÁVILA. C., CARDOSO. M., XAVIER. A. O brincar livre na escola de ensino fundamental e formação de professores: A experiência do Baú Brincante. In: D’ÁVILA, C; FORTUNA, T. R. Ludicidade, Cultura Lúdica E Formação De Professores. Curitiba: Editora CRV, 2018, p. 89-108.
FRIEDMANN. Adriana. Um olhar antropológico por dentro da infância. In: MEIRELLES, R. (org.). Território do brincar: diálogo com escolas. São Paulo: Instituto Alana, 2015. (Coleção Território do Brincar).
LOPES, M. C. O. Brincar Social Espontâneo na Educação de Infância: um estudo. E-Book (PDF). Aveiro, Portugal, Universidade de Aveiro. Dez, 2016.
LOPES, M. C. O. Aprender e ensinar a brincar. In: D’ÁVILA, C. e FORTUNA, T. Ludicidade, cultura lúdica e formação de professores. Curitiba: Ed. CRV, 2018.
PIORSKI, G. Brinquedos do chão: A natureza, o imaginário e o brincar. Rio de janeiro: Editora Petrópolis, 2016.
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